Alimento para o pensamento internacionalista

por Sabrina Fernandes

A produção e o consumo de alimentos são, por sua própria natureza, preocupações internacionalistas. A estabilidade econômica, as relações políticas, a reprodução social do trabalho e a assistência médica não são determinadas apenas dentro das fronteiras de uma nação. A interconectividade dos alimentos exige uma estratégia internacionalista cuidadosa para repensar e coordenar o acesso e a distribuição de alimentos, bem como o que a humanidade deveria estar comendo (ou seja, alimentos considerados além de meras unidades de energia para consumo ou escolhidos com base no que chega às prateleiras dos supermercados). Fundamentalmente, para superar a crise alimentar será necessário abordar as causas básicas relacionadas à propriedade e ao controle da terra, à mercantilização das culturas alimentares e à degradação ambiental e da saúde associada ao sistema global dominante de produção de alimentos. Atualmente, a oposição a esse sistema vem de diferentes fontes, incluindo organizações de trabalhadores rurais e urbanos, comunidades afetadas e povos indígenas. Embora esses grupos sejam díspares, sua luta compartilhada é pela criação de uma política comum para os alimentos, a terra e a natureza.

Uma combinação de crises recentes - incluindo inundações na Somália, seca na Etiópia e um terremoto no Afeganistão - ilustrou a crescente dependência global de alimentos e ajuda humanitária. Durante eventos como esse, fica mais difícil para os países lidarem com as pressões externas, e sua capacidade de produzir e distribuir alimentos adequados por meio de canais econômicos regulares diminui. A policrise global afeta a capacidade de prever resultados e riscos, mas a imprevisibilidade não pode se tornar uma desculpa para normalizar respostas inadequadas à fome diante de crises cada vez mais complexas e aceleradas. 

Em vez disso, a imprevisibilidade deve ser levada em conta nos cálculos estratégicos. O colapso ecológico causará danos em uma escala que nenhuma captação de recursos e transferência de grãos poderá mitigar. De fato, em um cenário de colapso ecológico, será impossível garantir a nutrição básica dos mais de oito bilhões de pessoas que vivem no planeta.  

A agricultura industrial e a produção de monoculturas tornam-se mais vulneráveis a cada dia, devido aos impactos das mudanças climáticas, das guerras e da dependência do setor petroquímico. Essa vulnerabilidade coloca os suprimentos de alimentos sob constante ameaça.

Da segurança alimentar à soberania alimentar 

A desigualdade não é um acidente, tampouco é uma característica isolada ou um efeito colateral da policrise. Pelo contrário, é uma característica definidora do capitalismo. A desigualdade impede que a maioria da população mundial tenha acesso aos meios adequados para produzir alimentos e sustentar um meio de vida que inclua o consumo de uma dieta variada e saudável. As maiores instituições de governança mundial e as métricas estatais ainda centram sua abordagem na segurança alimentar, enquanto a soberania alimentar surgiu como a orientação estratégica dos movimentos sociais e das organizações de trabalhadores rurais nos últimos trinta anos. Para esses grupos, o alimento é mais do que apenas uma questão de sustento, mas é um meio central pelo qual podemos organizar a sociedade de forma justa e sustentável.

A Cúpula Mundial da Alimentação de 1996 abordou a segurança alimentar por meio dos princípios de garantir que haja alimentos seguros e nutritivos suficientes que possam ser acessados diariamente para atender às necessidades dietéticas saudáveis e às preferências alimentares. Por definição, essa é uma meta desejável e digna. Entretanto, nos anos seguintes, a segurança alimentar se transformou em um paradigma que não questiona a dinâmica de poder subjacente e a reprodução das condições materiais que tornam a insegurança alimentar uma característica permanente da ordem global. Em sua essência, o paradigma da segurança alimentar trata apenas do acesso aos alimentos, sem questionar as estruturas políticas e econômicas que determinam e controlam o acesso, bem como a distribuição. 

Ao deixar de abordar as causas fundamentais da fome e da carestia, o paradigma da segurança alimentar torna impossível acabar com a fome em nível global. É claro que muitas pessoas em todo o mundo têm segurança alimentar, mas isso está restrito a bolsões geográficos cada vez mais limitados. Em termos das pessoas localizadas em uma área, a vulnerabilidade alimentar é influenciada e determinada por classe, raça, gênero e, é claro, status de cidadania. Em termos globais, o "subdesenvolvimento" e o "desdesenvolvimento" levam a uma insegurança alimentar generalizada em várias áreas. Outro problema com o paradigma da segurança alimentar é que ele é facilmente cooptado para gerar respostas parciais que não representam uma ameaça ao sistema alimentar corporativo ou, pior, que até abrem novas oportunidades de lucro. Acelerado por outras crises, o paradigma da segurança alimentar torna-se cada vez mais dependente da ajuda, seja por meio da entrega direta de alimentos, transferências de dinheiro ou pequenos projetos de desenvolvimento que não podem competir com os gigantes do setor de alimentos e seus poderes de fixação de preços.

Na prática, surge uma "ciência da segurança alimentar", que tem como foco as calorias e os resultados compatíveis com a agricultura de precisão, com o objetivo de aumentar o rendimento das colheitas e auxiliar as decisões de gerenciamento usando sensores e ferramentas de análise de alta tecnologia. Esse modelo tende a depender de tecnologias da "Revolução Verde" que dependem de fertilizantes químicos e pesticidas e que estão vinculadas a projetos e corporações coloniais, a fim de otimizar os recursos na resposta à ajuda e/ou nos projetos de desenvolvimento. 

Nesse raciocínio, a insegurança alimentar pode ser resolvida com a obtenção de rendimentos ideais de determinadas culturas que devem atender à demanda por gorduras, fibras e proteínas. Tudo isso é cuidadosamente gerenciado e orientado por dados. A agricultura de precisão é defendida pela Aliança para uma Revolução Verde na África (AGRA) com o objetivo de otimizar "as cadeias de valor agrícola [...] essenciais para o avanço da suficiência alimentar e nutricional sem aumentar o tamanho da terra cultivada". O enquadramento dos alimentos, que os reduz apenas a "insumos ideais", relega a segundo plano elementos vitais da produção de alimentos e da cultura da alimentação, como a propriedade do território, o sabor, a herança, o cuidado, o bem-estar e a conexão. Essa abordagem reducionista, no entanto, mostrou-se útil para a agricultura corporativa, pois reforça o argumento a favor de culturas geneticamente modificadas (OGMs), fertilizantes mais eficientes e a padronização da produção de alimentos para fins de mercado. Os defensores das tecnologias de cultivo de plantas (incluindo OGMs e sementes híbridas) argumentam que a regulamentação excessiva do governo é um obstáculo para a obtenção da segurança alimentar. O excesso de regulamentação, segundo o argumento, nega às populações a oportunidade de cultivar culturas que aumentam a eficiência do uso de nutrientes e são mais resistentes aos choques climáticos. 

A imprevisibilidade da crise climática e a ameaça de um colapso ecológico iminente foram sequestradas por novos setores. Esses atores dominam o setor agrícola, oferecendo soluções baseadas em tecnologia que aumentam a "resiliência", ajudando a absorver choques. O surgimento desses setores é um excelente exemplo do que acontece quando a resiliência é retirada de um horizonte estratégico de mudança radical e transformada em um resultado de mercado. Se os críticos da policrise quiserem de fato resolvê-la, vale a pena considerar o significado de "resiliência" que está sendo usado. 

É a resiliência que reforça a orientação para o lucro e as fraturas metabólicas que estão na base da insegurança alimentar? Ou a resiliência como um meio de ajudar a criar as condições que abordarão a causa além dos sintomas da insegurança alimentar?

O paradigma da segurança alimentar consiste em otimizar a produtividade. É verdade que a produtividade é importante - afinal, alimentar o mundo exige enormes quantidades de alimentos. Mas se a produtividade for abordada apenas como um problema tecnológico, isso reforça a tendência de fragmentar os aspectos quantitativos e qualitativos da produção e do consumo de alimentos. Do ponto de vista quantitativo, a produção para a segurança alimentar é vista como um desafio de multiplicação. Já a divisão, ou seja, a distribuição de alimentos, é deixada para o planejamento logístico. Isso ignora o que Raj Patel identificou em seu influente livro de 2007, Stuffed and Starved, como o gargalo de poder que concentra a distribuição internacional de alimentos em um pequeno grupo de corporações. Esse gargalo exclui os pobres e os produtores de alimentos de pequena escala da tomada de decisões. Ele também normaliza tendências preocupantes, como a dependência excessiva da exploração industrial de animais como fonte de proteína, o que tem implicações diretas para a saúde, além de consequências de longo prazo, como a proliferação de novos vírus, emissões de gases de efeito estufa e uso ineficiente da água e do solo.

Quando surge a pergunta sobre o que de fato é um alimento, a qualidade pode ser absorvida em categorias como calorias e um grupo definido de nutrientes. Esse enquadramento, no entanto, não amplia adequadamente a discussão sobre alimentos para incluir variedade, sabor, costumes e vida comunitária. Além disso, a crise global da fome pode parecer ser principalmente uma crise de falta de alimentos suficientes. Isso não leva em conta o fato de que, nas soluções apresentadas para a insegurança alimentar, a perpetuação e a reembalagem do alimento como mercadoria mantêm as práticas coloniais, sustentam a desigualdade fundiária e contribuem para a degradação ambiental. A crise alimentar não é apenas uma crise, mas o resultado de um projeto que tem dado poder às elites do mundo, século após século. A ameaça da fome e da inanição tem se mostrado potente o suficiente para manter as pessoas em condições precárias de trabalho, nas quais estão sujeitas à exploração, desde que suas necessidades alimentares mais básicas sejam atendidas.

O paradigma da segurança alimentar não desafia o capitalismo e, portanto, não desafia as causas fundamentais da crise alimentar. No máximo, o paradigma da segurança alimentar tenta reformar parcialmente a crise alimentar por meio de esquemas de alívio da pobreza. 

A soberania alimentar, por outro lado, oferece uma visão de um mundo alternativo. A soberania alimentar baseia-se na criação e no sustento da vida e, portanto, precisa incorporar abordagens democráticas à terra, ao território e à tomada de decisões. Juntas, essas abordagens podem produzir os resultados desejáveis de respeitar as preferências alimentares e promover uma vida ativa, que estão incluídos na definição de segurança alimentar. 

A soberania alimentar questiona a base da ordem existente e busca criar alternativas poderosas. Isso significa até mesmo repensar a cultura alimentar atual, que promove alimentos ultraprocessados, o consumo insustentável e baseado em crueldade de proteína animal e a disponibilidade durante todo o ano de frutas e legumes fora de época enviados de longe. O paradigma da soberania alimentar nos incita a repensar as causas da fome e da insegurança alimentar. Além disso, ele pede que aqueles que têm os meios para escolher o que comer usem esse poder.

A soberania alimentar está necessariamente relacionada a questões de propriedade e à determinação dos meios de produção de alimentos. É por isso que os movimentos sociais que lutam pela reforma agrária e pelo controle popular sobre o território, incluindo as reivindicações territoriais indígenas, foram pioneiros nos debates sobre a soberania alimentar. A Via Campesina, o maior movimento internacional de camponeses, produtores de alimentos em pequena escala e trabalhadores agrícolas, define a soberania alimentar como uma luta pelo futuro. Isso significa não apenas garantir o que é necessário hoje, mas mudar as condições para o acesso sustentável de longo prazo a alimentos de alta qualidade, juntamente com modos de vida transformados. 

Diversidade como resiliência radical

O conceito de soberania alimentar está profundamente preocupado com a restauração e a expansão dos sistemas de cuidados. As lutas das mulheres rurais, das comunidades indígenas e negras para ter acesso à terra, restaurar os ecossistemas e cultivar alimentos saudáveis demonstram como a tarefa de acabar com a fome está entrelaçada com a emancipação das pessoas em todos os lugares. Por exemplo, não basta incluir cláusulas e salvaguardas de gênero nos acordos comerciais e de ajuda alimentar. Isso ocorre porque cláusulas como essas não abordam a estrutura subjacente que exclui as mulheres do acesso à terra em primeiro lugar e, depois, do acesso aos recursos necessários para cultivar e distribuir alimentos sem se tornarem mais dependentes de dívidas e transferências estatais. A soberania alimentar enfatiza a autonomia e a autodeterminação, o que significa que as relações por trás da produção também devem ser transformadas, para que se tornem mais horizontais, mais descentralizadas e mais diversificadas.

A soberania alimentar desafia a monocultura em mais de um aspecto. Em uma carta à Via Campesina Brasil, o falecido e grande jornalista uruguaio Eduardo Galeano escreveu: "A monocultura é uma prisão, sempre foi, e agora com os OGMs, muito mais. A diversidade, ao contrário, liberta. A independência é reduzida a um hino e a uma bandeira se não for baseada na soberania alimentar. A autodeterminação começa pela boca. Somente a diversidade produtiva pode nos defender de colapsos repentinos de preços, um fenômeno que é a norma, a norma mortal, do mercado mundial."

Por monocultura, Galeano se refere tanto aos métodos de monocultura empregados pela agricultura corporativa quanto à forma como a atual abordagem hegemônica dos alimentos cria sistemas alimentares homogêneos, que achatam a especificidade cultural. A falta de diversidade de culturas nas monoculturas significa que há menos variedade de alimentos nutritivos disponíveis localmente. No entanto, isso não é percebido por quem faz compras em grandes redes de supermercados, onde frutas fora de época e grãos importados de longe estão prontamente disponíveis. A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) acredita que há um declínio na agrobiodiversidade devido aos métodos da Revolução Verde e à globalização, que mudam as percepções do que pode ser cultivado e consumido: no passado, os seres humanos dependiam de mais de 7.000 espécies de plantas como fontes de alimentos, agora dependemos principalmente de algumas culturas, como arroz, trigo e milho. 

A cultura de monocultura carrega consigo um desdém pelo conhecimento tradicional e pelas práticas agrícolas, o que contribui para um sistema de produção que remodela a vida rural de maneiras multifacetadas. As mulheres são afastadas da produção de alimentos e os jovens são expulsos das áreas rurais para as periferias das megacidades. A agricultura de monocultura requer apenas a mão de obra de uma pequena parcela dos trabalhadores que seriam necessários para trabalhar a terra se ela fosse de propriedade e administrada de formas alternativas e coletivas. Esse processo é chamado pelo movimento brasileiro Teia dos Povos de "desterritorialização". Concentração de terra é o termo usado para descrever a propriedade da terra em uma área que está concentrada nas mãos de um pequeno número de pessoas ou empresas. 

Esse fenômeno, e a violência em torno dele, também leva à expulsão de pessoas dos territórios, com consequências específicas para a desigualdade racial e de gênero. Em todo o mundo, os proprietários de terras geralmente são homens e, onde a agricultura corporativa é dominante, o sistema de plantação prejudica as mulheres com empregos de curto prazo, precários e menos protegidos.

Em resposta a isso, as trabalhadoras agrícolas lideraram movimentos de reforma agrária em todo o mundo. Especialmente poderosos no Sul Global, esses movimentos ajudaram a definir a agenda contra questões como a privatização de sementes por empresas e agroquímicos, como fertilizantes químicos e pesticidas que destroem os solos e matam a biodiversidade. Em uma região tão diversa como a América Latina, essa combinação de luta para garantir o acesso à terra e, ao mesmo tempo, assegurar que o papel das mulheres, dos negros e das comunidades indígenas seja valorizado, ajuda a transformar a luta pela segurança alimentar em soberania alimentar.

A Marcha das Margaridas é um exemplo disso. Uma mobilização em larga escala de mulheres rurais no Brasil, que combina políticas de base e institucionais para promover a agroecologia feminista, uma visão de práticas agrícolas que centraliza o cuidado e a participação democrática.Cada vez mais, a demanda não é apenas por reforma agrária, mas também por uma reforma feminista, agroecológica e que empodere a população local. Não basta dividir a terra e redistribuir parte dela. Também são necessárias políticas públicas e investimentos para garantir que as pessoas possam regenerar o solo degradado, construir moradias adequadas, oferecer escola para seus filhos e encontrar meios econômicos para transportar e obter acesso aos mercados para seus produtos. 

Tudo isso deve acontecer com a priorização das populações locais e domésticas em detrimento das exportações de commodities.

Se essas condições forem atendidas, os pequenos produtores de alimentos não apenas se beneficiarão de um título de terra, mas também obterão os meios para cultivar a terra e viver bem. As demandas levantadas pela Marcha das Margaridas resultaram recentemente no lançamento de novos programas sociais no Brasil. O Programa Nacional de Reforma Agrária foi restabelecido, priorizando as mulheres, e um novo programa, Quintais Produtivos, foi criado para promover a "segurança alimentar e nutricional" e a autonomia das mulheres rurais. Aqui, a diversidade se traduz em um apelo que conecta a propriedade da terra ao direito à alimentação e à transformação social necessária para traduzir esses direitos (como acesso e controle) em soberania (como permanência e segurança).

Em todo o mundo, as mulheres rurais estão criando práticas coletivas que fortalecem as economias locais e contestam as formas patriarcais tradicionais de organização em torno da terra. Os exemplos incluem a organização ecofeminista Alianza de Mujeres en Agroecología (Aliança de Mulheres em Agroecologia), na Colômbia, e o surgimento do "feminismo campesino", que destaca o papel das mulheres na agroecologia na Guatemala. 

Os princípios da agroecologia se alinham de forma clara com essas vertentes do feminismo; por exemplo, as mulheres rurais tendem a usar práticas de agricultura orgânica e sementes de agricultores. As mulheres rurais também são um poderoso impulsionador dos mercados locais, por meio da fabricação e venda de produtos como sabão artesanal e plantas medicinais.

Modos de produção inclusivos

A solução da crise alimentar global significa promover modos de alimentação mais inclusivos. Isso inclui reimaginar a distância entre o local onde o alimento é produzido e o local onde é consumido, como a escolha é criada, o papel da tecnologia na produção e como reduzir o transporte global. Também aborda nossa relação com a criação de resíduos orgânicos e inorgânicos, o problema do desperdício de alimentos, nossa relação com outras espécies animais e, por fim, as maneiras pelas quais os alimentos têm a ver com o tempo e o ritmo de vida.

Um modo inclusivo de alimentação requer um modo ecoterritorial de produção de alimentos. A agroecologia desempenha um papel importante nesse contexto. Isso se deve a vários motivos, incluindo sua recusa em separar a produção de alimentos das condições ecológicas que permitem o cultivo de um grande número de variedades de culturas. Além disso, como sistema, ela é mais resistente aos choques climáticos, sem ser sustentada pelos "remédios" duplos de curto prazo da extração de recursos e dos insumos químicos, que criam um ciclo vicioso de problemas de longo prazo. A agroecologia não se restringe às áreas rurais e ajuda a conciliar os padrões sociometabólicos da produção de alimentos, promovendo também a agricultura urbana. 

Esse modelo de agricultura envolve a regeneração do solo, a adaptação das cidades para uma era de crise climática e a união das prioridades da mão de obra urbana e rural de forma a ajudar a resolver as lacunas criadas pela migração forçada para as grandes cidades.

A monocultura corporativa promove uma abordagem de tamanho único para a produção de alimentos. Um modo ecoterritorial de produção de alimentos é uma ruptura radical com isso, pois promove um sistema em que os alimentos e o trabalho são considerados de acordo com a escala e o contexto. Nos movimentos de reforma agrária, as grandes fazendas são convertidas de extensas áreas de terra - que tendem a ter produtividade abaixo do ideal, práticas de trabalho violentas (inclusive trabalho escravo) e degradação ambiental - para terras que são abordadas por meio de sistemas cooperativos, em que o uso de maquinário é complementar ao trabalho e ao gerenciamento humanos. 

Quando os movimentos sociais começaram a incorporar mais a perspectiva agroecológica, isso fez sentido do ponto de vista estratégico. Primeiro, porque a agroecologia é compatível com os valores das comunidades tradicionais, que abordam os alimentos e a natureza de maneiras radicalmente diferentes da agricultura capitalista. Em segundo lugar, porque ela promove as ferramentas e o conhecimento que tornam a produção do movimento menos vulnerável aos choques e restrições do clima e do mercado. Esse último motivo é também a razão pela qual os grandes agronegócios começaram a se apropriar de técnicas agroecológicas, na esperança de garantir rendimentos e lucros e aliviar os riscos causados pelas mudanças climáticas. Mas, mais uma vez, isso é resiliência como uma solução de mercado, e não como um meio de criar força a longo prazo e mudar o sistema de forma fundamental. Como o agronegócio deturpa a agroecologia, tratando-a como tecnologia desprovida de cultura e meios de subsistência, sua apropriação acabará fracassando.

O paradigma agroecológico permite a regeneração contra condições desfavoráveis, criando os meios para enfrentar os desafios emergentes e crescentes. Juntas, a agroecologia e a soberania alimentar exigem políticas públicas radicais e redistribuição de terras. As instituições atuais limitam qualquer sistema alternativo, em favor de um sistema alimentar corporativo. Sem reforma agrária e políticas que promovam novas conexões comerciais e sistemas logísticos, é quase impossível para os pequenos produtores de alimentos, por mais unidos que estejam, competir com o agronegócio e os grandes comerciantes de alimentos que têm a capacidade de definir preços e acumular terras. Conforme argumentado na Declaração de Nyéléni - produzida no Fórum Mundial pela Soberania Alimentar de 2007, redigida em Mali e assinada por representantes de organizações populares de mais de 80 países - não pode haver soberania alimentar se o acesso aos alimentos for concedido às custas dos direitos e dos meios de subsistência daqueles que os produzem.

O comércio e o comércio transparentes são pilares fundamentais da soberania alimentar e da luta contra a mercantilização dos alimentos. Comércio transparente significa resistir aos acordos internacionais de livre comércio (ALCs), como o que está sendo negociado atualmente entre a União Europeia (UE) e o Mercosul (o bloco econômico e político formado por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai). Em uma demonstração de força e cooperação internacionalista, as organizações de camponeses e pequenos agricultores da Europa e da América do Sul começaram a se mobilizar contra esse TLC. 

Em uma de suas declarações conjuntas, eles argumentaram que o acordo pioraria a vida dos camponeses e trabalhadores rurais e afirmaram que "em vez de promover a reterritorialização ecológica de nossos sistemas alimentares, (o TLC) aumentará o intercâmbio transcontinental de produtos agrícolas que podem ser produzidos de forma sustentável e agroecológica em nossos territórios. Do ponto de vista de um sistema alimentar sustentável, isso está em total contradição com todos os compromissos de nossos governos no Acordo de Paris sobre o clima e nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)". 

A soberania alimentar é um projeto internacionalista

Essas lutas interconectadas compõem um internacionalismo popular e emancipatório que se concentra na afirmação econômica e na autodeterminação dentro das fronteiras de um Estado. Isso sem nacionalismos chauvinistas que negam a integração e, ao mesmo tempo, reforçam a exclusão de outros povos vulneráveis em nome de um único projeto nacionalista. Para pensar na soberania alimentar como um projeto de longo prazo, que inclui a construção de um futuro inclusivo e sustentável, devemos considerar o papel da soberania alimentar na criação de condições adequadas para a mudança. A crise climática ameaça a soberania internacionalista hoje, tanto no sentido de que impacta a segurança nacional quanto no sentido de que resulta na perda de territórios inteiros e exige a migração de pessoas. Nesse contexto, a soberania alimentar mostra como o conhecimento popular, as economias solidárias e os sistemas inclusivos podem criar o tipo de resiliência que mitiga os riscos e ajuda a navegar pela incerteza imposta pela policrise. 

Na abordagem internacionalista da policrise, a resiliência significa mais do que apenas a capacidade de enfrentar a tempestade da imprevisibilidade. Em vez disso, a resiliência diz respeito à construção de condições favoráveis e sustentáveis que levem ao tipo de ação que atinja a raiz das crises. Uma concepção internacionalista estratégica da soberania alimentar faz parte desse desafio, pois expõe a economia política internacional que gera fome e carestia em locais que, de outra forma, estariam maduros para sistemas alimentares sustentáveis e saudáveis. Ela expõe como os acordos econômicos impostos pelos governos aos trabalhadores agrícolas e camponeses não corrigem as vulnerabilidades, mas criam mais vulnerabilidades, tudo para beneficiar as corporações que, então, mantêm sua tradição de especulação de preços e monopólios alimentares. 

Isso é agravado por um contexto global de guerras e ocupações. É claro que há a destruição direta que é o resultado em primeira mão desses conflitos contínuos, mas também a maneira como eles geram uma demanda constante de reconstrução e regeneração, bem como as emissões de gases de efeito estufa que são produzidas ao longo do caminho. A incerteza da guerra prejudica a soberania de maneiras óbvias, mas também impede qualquer caminho em direção à soberania alimentar ao deslocar e matar de fome as populações, ao mesmo tempo em que destrói as condições locais que poderiam remediar o deslocamento e a fome. Esse é o caso de Gaza, que no início de 2024 ainda está sob um bloqueio de ajuda humanitária, e do Sudão, onde cerca de 5 milhões de pessoas estão sob níveis emergenciais de fome. Esse também é o caso da Ucrânia, onde a guerra criou 11 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar e afetou os preços dos alimentos em todo o mundo devido ao papel da Ucrânia como um dos celeiros do mundo - com suprimentos de alimentos que antes atingiam até 400 milhões de pessoas por ano. 

Como as inadequações do sistema alimentar global não são apenas falhas, mas características profundas do modo capitalista dominante de produção de alimentos, a estratégia internacionalista significa concentrar-se na soberania alimentar em vez da segurança alimentar. Alcançar a soberania alimentar significa combater as mudanças climáticas, garantir o direito à terra, valorizar o conhecimento tradicional, tudo isso sob a liderança de diversos movimentos sociais com uma orientação anticapitalista. 

O entrelaçamento das lutas internacionalistas no paradigma da soberania alimentar pode trazer a verdadeira resiliência: cultivar alimentos para alimentar o mundo e, ao mesmo tempo, criar as condições para enfrentar choques sistêmicos, sobreviver e se fortalecer na luta pela mudança sistêmica.

 

Sabrina Fernandes

Sabrina Fernandes é uma socióloga e economista política brasileira, com foco em transição, América Latina e internacionalismo. É diretora de pesquisa do Instituto Alameda.

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