Um ambientalismo radical dos povos: o primeiro passo para uma transição socioecológica emancipatória
A crise climática que ameaça a vida na Terra não está isolada das lutas populares por terra, território e soberania alimentar. No Brasil, por meio de organizações como a Teia dos Povos, ou dentro do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), temos produzido diagnósticos baseados nas experiências de lutas dos movimentos populares e no entrelaçamento das crises que têm sido sistematicamente ignoradas pelos Estados nacionais e promovidas pelo grande capital. Aqui, refletimos sobre três dimensões dessa policrise: a crise global da fome; as mudanças climáticas; e o aprofundamento da dominação capitalista por meio da exacerbação da insegurança no trabalho. Acreditamos que, no Brasil, um ambientalismo radical promulgado por movimentos populares pode nos proteger dessas três dimensões, transformando a luta pela terra em uma luta fundamental por Planeta Terra
Territórios dos povos e a maioria "desterritorializada
A urbanização forçada tem sido uma condição do desenvolvimento capitalista, transformando pessoas que antes tinham seus meios de subsistência ligados à natureza em potenciais trabalhadores assalariados. Enquanto isso, a própria natureza foi transformada em "recursos naturais". O termo é interessante; como um dos mais importantes intelectuais indígenas do Brasil, Ailton Krenak, pergunta: "recurso natural para quem? 1KRENAK, Ailton. Ideas to postpone the end of the world. São Paulo: Publisher: Companhia das Letras, 2019, p.22.Na Europa, antes dos grandes cercamentos, a maioria das pessoas vivia em uma relação vigorosa com o meio ambiente, com o bioma e, de certa forma, promovia a simbiose com a natureza. Sob o capitalismo, a humanidade tem se dissociado da natureza de forma contínua e crescente. A expansão colonial impôs essa perspectiva aos espaços dos povos ameríndios e africanos que, via de regra, consideravam a natureza sagrada e, portanto, a defendiam cotidianamente em seu modo de vida. Isso não quer dizer que essa perspectiva colonial tenha sido adotada por todas as pessoas que vivem sob o capitalismo. Ailton Krenak também nos lembra que, para muitos povos indígenas, a natureza ainda não é uma mercadoria: "o Rio Doce [rio], que nós Krenak chamamos de Watu, nosso avô, é uma pessoa, não um recurso, como dizem os economistas". Ainda há pessoas que não veem a natureza como uma mercadoria, e outras não foram arrastadas para o ciclo de absorção e expulsão de trabalhadores assalariados formais do capital, buscando ativamente evitar esse destino. Chamamos as áreas onde vivem de territórios da vida ou territórios dos povos: lugares onde a natureza é defendida porque os modos de vida estão intimamente ligados à terra e ainda há uma sacralidade na forma como os biomas são vistos e vividos.
No Brasil, sabemos que os territórios eram ocupados por povos indígenas, ribeirinhos. As terras indígenas e outros povos tradicionais que vivem já estão significativamente protegidas em termos de biodiversidade e extensão. De acordo com o estudo MAP Biomas 2023, as terras indígenas ocupam 13,9% do território nacional, mas contêm 20,4% da vegetação nativa. Esses territórios estão entre os menos desmatados, sendo responsáveis por apenas 0,9% do desmatamento nos últimos 30 anos. Por outro lado, as terras privadas no Brasil perderam 69,3% de sua vegetação nativa no mesmo período. Esses dados são impossíveis de serem ignorados, seja na reflexão sobre um possível futuro para esses povos, seja na construção de uma perspectiva de ambientalismo radical para todas as pessoas. Para construir um futuro possível para os povos, é fundamental pensar na questão da terra: a propriedade privada da terra é um dos principais vetores da catástrofe que estamos discutindo. Por outro lado, defender os territórios dos povos que sofrem com o racismo ambiental - braço forte do capitalismo para desterritorializar e vulnerabilizar as pessoas e a natureza - é ainda mais importante porque esses podem ser espaços de resistência e transformação que garantem a reprodução da vida.
O que torna possível a conservação do bioma é justamente a propriedade coletiva da terra por esses povos. Não pode haver conservação real de um bioma - além de arranjos frágeis e de curto prazo - quando há insegurança fundiária. O cultivo de florestas é um meio de combater a mudança climática, mas é necessário perguntar onde essas florestas estarão, quem é o proprietário da terra a ser regenerada e se a segurança intergeracional é oferecida para sua manutenção e conservação; em outras palavras, os meios para a soberania territorial garantem a sustentabilidade de longo prazo da tática empregada. O tipo de ambientalismo difuso que defende o plantio de árvores de forma simbólica, ou que regenera terras privadas para compensar o impacto da mineração ou das indústrias, não apresenta um projeto para a sociedade que evite a destruição generalizada ou o risco de um novo ciclo de destruição impulsionado por interesses lucrativos. Pelo contrário, tais formas de ambientalismo têm favorecido falsas soluções de mercado, facilitando a especulação e o aprofundamento da lógica da mercantilização da natureza. Assim, qualquer esforço para recuperar uma área degradada é sempre passível de se transformar novamente em madeira para o mercado dentro de algumas décadas, porque o processo de regeneração de um pedaço de terra está desconectado do modo de vida, dos usos e das condições de vida das pessoas que vivem nessa terra.
Os povos que são territorializados vinculam sua terra ao seu modo de vida. Dessa forma, eles tendem a ser mais autônomos do que os trabalhadores assalariados em relação ao capital - não apenas em sua capacidade de acessar água e alimentos, mas também em sua experiência de vida comunitária, que continua sendo uma condição para a organização política. Álvaro García Linera, ex-vice-presidente da Bolívia, explica isso:
Na comunidade, os meios de trabalho não são propriedade privada no sentido mercantil do termo, nem o trabalho é concentrado como uma mercadoria, nem é incorporado ao processo de trabalho para aumentar o valor, nem o trabalhador direto está sujeito aos meios de trabalho.2GARCÍA LINERA, Álvaro. The plebeian power: collective action and indigenous, labour and popular identities in Bolivia. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 62.
Assim, outra relação com a terra, como um meio de trabalho para os povos, é possível. Para Linera, "a possibilidade de uma insurgência autêntica contra o domínio do capital é impensável se estiver à margem da classe comunal e de sua luta para universalizar a racionalidade que a caracteriza".
A possibilidade de uma transição internacional justa, que englobe não apenas elementos da transição energética, mas também uma ruptura com os outros modelos do capitalismo, vários e entrelaçados, para a destruição da natureza, exige mobilização e ação maciça: uma grande rebelião climática que conecte diferentes lutas. É necessário recuar contra a destruição das condições de vida em nosso planeta, e isso, sem dúvida, envolve o conhecimento, as lutas, os modos de vida e a organização dos povos que ainda vivem em suas comunas, em seus territórios de vida.
Nos territórios de destruição, onde o capital submete a Terra a seus caprichos, a relação entre a natureza e a civilização é cortada. Essas são as grandes cidades, os latifúndios de monocultura, os lugares afetados pela mineração e muitos outros locais onde a vida está subordinada ao lucro. Esses territórios cresceram em um ritmo acelerado nas últimas décadas, lançando cada vez mais pessoas em uma guerra indireta com a natureza.
Nas últimas quatro décadas, a ascensão do pensamento neoliberal na sociedade brasileira contribuiu para aumentar a vulnerabilidade daqueles que vivem nas margens das cidades. A população urbana do Brasil tem crescido desde a década de 1950, como resultado da expansão demográfica nas cidades e da migração do campo para as cidades. O último censo do IBGE (2022) demonstra que pelo menos 61% da população vive em cidades com mais de 100.000 habitantes. O neoliberalismo acelerou então a desintegração da economia formal, que já era incapaz de absorver a oferta de mão de obra urbana. Isso levou a um aumento maciço da informalidade. Os trabalhadores que, por meio da acumulação primitiva ao longo de gerações, se tornaram desterritorializados, se viram em condições cada vez mais precárias e incertas, separados de suas redes tradicionais de apoio.
O capital obteve uma nova vitória aqui: os trabalhadores estão se tornando cada vez menos fixos em seus empregos, e o poder de seus sindicatos e organizações de classe não é tão forte. Longe dos campos de seus avós, dos quintais de seus pais e das assembleias de trabalho, a maioria está mais dependente dos patrões e dos mercados. São essas pessoas, separadas de suas regiões e modos de vida ancestrais, que chamamos de desterritorializadas. Pelo poder do capital, elas foram desconectadas de uma vida pacífica com a natureza, sem nenhuma terra para chamar de sua.
A partir de meados do século XX, o êxodo rural foi intensificado pela disseminação do estilo de vida metropolitano como um sonho de consumo, em uma produção contínua de lugares ruins (lugares de capital). Quanto menos pessoas permaneciam na terra, mais vulnerável ela se tornava à concentração da propriedade. Sabemos que 1% dos proprietários rurais no Brasil já detém metade das áreas cultivadas3See Zimerman, A., Correia, K.C., Silva, M.P. (2022). Land Inequality in Brazil: Conflicts and Violence in the Countryside. In: Ioris, A.A.R., Mançano Fernandes, B. (eds) Agriculture, Environment and Development. Palgrave Macmillan, Cham. https://doi.org/10.1007/978-3-031-10264-6_6. Esse uso da terra não respeita a natureza, não busca o enraizamento das pessoas nas comunidades rurais nem se esforça para produzir alimentos para a população. Pelo contrário: aqueles que trabalham para os grandes proprietários rurais geralmente são desconectados da terra e forçados a produzir alimentos não como fonte de vida para as pessoas, mas como uma mercadoria para o mercado internacional.
O modelo brasileiro de propriedade da terra é, em grande parte, responsável pela crescente destruição da Amazônia, pela intensificação das queimadas no Pantanal, pelo risco real do fim do Cerrado e pela desertificação da Caatinga. A maior parte das emissões históricas de gases de efeito estufa do Brasil é proveniente dessa destruição, o que faz do Brasil um dos maiores emissores do mundo. Nesse contexto, mesmo que o Brasil estivesse progredindo de fato em direção a uma transição energética justa - o que não é o caso, dada a ausência de um plano de eliminação gradual dos combustíveis fósseis - o objetivo geral de conter as mudanças climáticas não seria alcançado. A transição requer não apenas a introdução gradual de fontes renováveis de energia, mas também o atendimento aos biomas, aos territórios e às pessoas que vivem neles.
Veja, por exemplo, a catástrofe que o Rio Grande do Sul sofreu entre o final de abril e o início de maio de 2024. Até 21 de maio, a enchente histórica havia deixado mais de 580.000 desabrigados, 182 mortos e 22% da população do estado afetada de 1985 a 2022 substituiu 3,5 milhões de hectares de vegetação nativa, o equivalente a 22% de sua cobertura natural do solo, por monoculturas (principalmente de soja). O Rio Grande do Sul foi pioneiro em políticas ambientais no Brasil, até que os governos recentes desmantelaram os padrões ambientais para alimentar a ganância insaciável do agronegócio e da especulação imobiliária. Enquanto as instituições estaduais se apressaram em viabilizar essa catástrofe de destruição ambiental e desterritorialização, a morosidade do governo federal impossibilitou a demarcação de 65 territórios indígenas, que ainda não foram homologados. O caso do Rio Grande do Sul parece ser um exemplo claro de como o uso desenfreado da terra como propriedade privada precipita e aprofunda a crise; certamente, ele ilustra que um ambiente mais seguro é necessariamente aquele que mantém sua vegetação nativa. E isso não pode ser reconstruído sem que se pense em um ambientalismo popular e radical que possa reunir os despossuídos em uma luta pela regeneração de solos e biomas.
Há uma relação entre a migração para longe da terra, que contribui para uma maioria despossuída e distante da natureza, e a crescente dependência da classe trabalhadora em relação ao capital. Um exemplo direto é o acesso aos alimentos. Atualmente, prevalece um sistema no qual o alimento é uma mercadoria e a terra é submetida a processos de degradação ambiental para a produção de mercadorias de exportação, que têm prioridade sobre a saúde e a vida das pessoas. Quando o alimento que é fundamental para a existência material das pessoas se torna o produto de uma das indústrias mais cruéis, a condição para a rebelião fica comprometida. Entendemos que a soberania alimentar é uma condição emancipatória para a luta do povo4See FERREIRA, Joelson; FELÍCIO, Erahsto. Para terra e território: caminhos da revolução popular no Brasil.Arataca (BA): Teia dos Povos, 2021. Soberania alimentar não significa apenas ter acesso a alimentos no dia a dia, mas também acesso à terra, às sementes crioulas e às condições de cultivo, armazenamento e processamento de alimentos saudáveis. Um povo sem soberania alimentar tem muito pouco espaço para manobras políticas. O mesmo pode ser dito sobre a soberania energética, em que dinâmicas semelhantes de concentração de terras e desterritorialização se aplicam especialmente a projetos de megadesenvolvimento.
Portanto, devemos observar onde vivem nossas maiorias e perguntar quais são as chances de expandir as condições de emancipação nas cidades. Embora a luta nas periferias urbanas do Brasil seja fundamental, as condições de emancipação são hoje limitadas não apenas pelo acesso precário aos meios de sobrevivência, mas também pela militarização do Estado, das milícias e das facções do tráfico, e por sistemas de controle e vigilância mais avançados e amplos, que suprimem tanto a vida quanto a livre organização política.
Enquanto isso, os territórios existentes dos povos possuem capacidades únicas para a defesa do planeta Terra, mas sua contribuição para a rebelião climática é limitada por seu pequeno número. Portanto, precisamos urgentemente construir mais territórios de vida além dos espaços de luta e resistência nas periferias urbanas.
Isso também implica pensar na vida comunitária além das tradições tradicionais ou das ideias convencionais de pertencimento. Como resultado da colonialidade, algumas tradições rebeldes tiveram de ser construídas. Enquanto as comunidades indígenas já tinham seus territórios antes da colonização e os perderam ao longo dos anos, os negros tiveram que construir suas novas comunidades aqui, seus aquilombamentos. Quando fugiram dos territórios de destruição (a plantação), construíram suas comunidades na floresta.5For a reflection on fleeing to the forests as a construction of brown or quilombola refuges, see BONA, Dénètem Touam. Cosmopoetics of Refuge. Translated by Milena P. Duchiade. Florianópolis: Editora Cultura & Barbárie, 2020, p. 47. A história dos quilombos no Brasil - assim como a dos marronismo em outras partes da América Latina - é uma pista para nosso pensamento político: o campo pode ser um refúgio contra a destruição capitalista, especialmente as florestas que produzem alimentos em abundância.6Clóvis Moura argues that the quilombola ‘roça’ was a space for polycultural agriculture, as opposed to the plantation, and abundance as opposed to the precariousness of slave life. See MOURA, Clóvis. The quilombos and the black rebellion. São Paulo: Editora Dandara, 2022, p. 47 and 49
A construção de novos territórios de vida pode envolver migrantes das periferias. Isso não seria feito às custas das lutas em andamento que estão encontrando força e mantendo viva a esperança nas cidades. Mas aqueles que não conseguem mais sobreviver por meio do trabalho alienado e em busca dele podem ser capazes de se reagrupar nos territórios da vida. Lá, eles se voltariam para o trabalho de plantar e cultivar, o que é muito urgente, dados os níveis de devastação e desmatamento causados pelo agronegócio e pelo extrativismo industrial predatório. Um movimento de reconstrução e recuperação no campo, por sua vez, contribuiria para as bases sociais e condições materiais para uma verdadeira transformação da vida nas periferias urbanas.
Pertencer a um território requer mais do que olhar para trás, para nossa ancestralidade. Precisamos entendê-lo como uma construção política revolucionária; em outras palavras, a partir de um senso de comunidade construído com o suor da luta, com o ardor do trabalho coletivo que se enraíza. Foi assim nos quilombos, foi assim na formação do movimento camponês no final do século XX. Os assentamentos do MST não são novas comunidades formadas pela luta? Não há ali um sentimento de pertencimento e uma vida comunitária que nos oferece um horizonte para a sociedade futura? Também podemos criar novos sentidos de pertencimento, além da simples ancestralidade, além da categorização étnica e, em vez disso, com base no projeto de transformação social, enraizado nos territórios, que enfrenta a realidade do deslocamento forçado que é apresentado por cada desastre climático.
Ambientalismo radical do povo
O ambientalismo radical dos povos em luta pode ser entendido pela clara percepção de que não há possibilidade de proteger a natureza sem libertar a terra do jugo da exploração capitalista, que no campo se apresenta como agronegócio. As florestas, as águas, os minerais - tudo isso está na terra e embaixo dela. Permitir que ela continue a ser explorada como mercadoria significa que os elementos essenciais para a manutenção da vida também serão explorados. Não há espaço para conciliação. A luta é pela terra e pelo território a fim de manter as condições de vida neste planeta para todos os seres. Embora o planeta esteja em meio a uma catástrofe, ele não depende da humanidade para continuar existindo. A responsabilidade da humanidade em deter o capitalismo destrutivo que ameaça a vida na Terra e que pode estar causando a sexta extinção em massa7See Ceballos G. and Ortega-Baes P. La sexta extinción: la pérdida de especies y poblaciones en el Neotrópico. Pp. 95-108, in: Conservación Biológica: Perspectivas de Latinoamérica. (Simonetti J., R., Dirzo, eds.) Editorial Universitaria. Chile: 2011.O objetivo é garantir um planeta com humanos e outros seres sob nossos cuidados.
Precisamos ocupar as terras daqueles que estão destruindo as condições de vida no planeta. Se antes os movimentos sociais se concentravam na produtividade do latifúndio, agora a atenção precisa se concentrar em sua destrutividade. Há história a esse respeito. Em abril de 2023, o MST ocupou uma área de 1.800 hectares de terra em Jaguaquara, Bahia, onde estava ocorrendo extração ilegal de madeira e areia. A ocupação da terra não apenas interrompeu o crime ambiental, mas também a destinou à produção agroecológica de alimentos e à geração de renda para os trabalhadores rurais da região. Esse é um caminho que já sabemos como construir.
Para essa grande tarefa, que exige trabalho, disciplina, comprometimento e muito amor, também precisamos de conexão e envolvimento com as maiorias despossuídas das grandes cidades. Como o desastre climático causa deslocamento forçado e migração interna desorganizada e precária, a construção de novos territórios de vida, com as pessoas se afastando da precariedade das periferias urbanas para plantar suas comunidades, torna-se uma forma cada vez mais necessária de resiliência contra desastres. Isso é fundamental não apenas porque a floresta é bela e necessária, mas também porque a floresta pode oferecer proteção às pessoas que, caso contrário, serão as primeiras a sentir os efeitos catastróficos do colapso climático.
A crise global da fome associada à mudança climática pode colapsar a produção regional de alimentos e espalhar a fome como uma praga nas periferias urbanas. Os conflitos pela água no Brasil e no mundo vão aumentar muito.8Water scarcity affects approximately 40 per cent of the world’s population and, according to estimates by the United Nations and the World Bank, droughts could put 700 million people at risk of displacement by 2030’. See https://www.bbc.com/portuguese/geral-58319129. In Brazil, the CPT recorded 225 water conflicts in 2022, affecting 44,400 families. See https://www.cptnacional.org.br/downlods?task=download.send&id=14292:conflitos-pela-a-gua-2022-tabela-si-ntese&catid=6 É provável que o estresse hídrico já existente se agrave nos próximos anos e, embora afete a população como um todo, as periferias urbanas serão as mais atingidas. Já vimos o obituário de nascentes e córregos no Cerrado, enquanto a Amazônia está enfrentando uma seca histórica. As nascentes de importantes cursos d'água brasileiros estão se tornando zonas de sacrifício da classe proprietária de terras.9Ramos Júnior, D. V., & Santos, V. P.. (2023). Energy crisis, water enclosure and resistance: the challenge of building political-epistemic communities. Revista Brasileira De História, 43(92), 29-46. https://doi.org/10.1590/1806-93472023v43n92-04
O processo de organização e mobilização daqueles que foram despojados de suas terras faz parte da construção de uma aliança campo-cidade para um objetivo comum: manter as condições de vida no planeta - e isso depende de transcender o capitalismo. É importante enfatizar que não se trata apenas de conservar o pouco que resta dos biomas, mas de restaurá-los e recuperá-los, conciliando a defesa da vida e a produção de alimentos saudáveis e nutritivos em quantidades suficientes para as comunidades rurais e os moradores das cidades, e a transformação das cadeias de produção, energia e transporte de acordo com a realidade climática. Aqui encontramos uma demanda por múltiplas soberanias, que inclui a soberania territorial como condição fundamental.
Um ditado popular comum se aplica aqui: 'rapadura10 The original expression from Brazil in fact refers to a sweet made of whole cane sugar, known as rapadura. é doce, mas não é mole". O desenvolvimento de um ambientalismo radical é uma tarefa urgente, necessária e bela, e seus frutos serão colhidos pelas gerações futuras, mas exige trabalho árduo como guardiões da vida e da Terra. Ao desfazer sua sujeição à classe proprietária de terras e expandir sua autonomia em relação ao capital, aqueles que participam desse esforço podem combater o capital em seus primeiros princípios, nas próprias raízes do que se tornou um sistema global.
A agroecologia desempenhará um papel importante nessa missão. Para o MST e os povos reterritorializados, a agroecologia é um modo de vida que gera uma simbiose entre a sociedade e a natureza. Ela não pode ser reduzida a um conjunto de técnicas, pois é por meio de sua perspectiva política que chegamos à missão da classe trabalhadora de fornecer não apenas alimentos de verdade, mas também água, floresta, ar puro e outros meios para sua própria emancipação.
É por meio da agroecologia que poderemos semear esperança nos corações brutalizados pela exploração do capitalismo. Não há espaço para romantizar e fantasiar sobre o trabalho árduo a ser feito, porque o sol quente e a terra dura degradada pela monocultura e pela pecuária terão de ser enfrentados - e sob condições climáticas cada vez mais adversas. É por isso que o uso de tecnologia e maquinário é bem-vindo e necessário, desde que esteja subordinado aos objetivos e princípios orientadores da agroecologia - um tipo de bem viver em relação à natureza e em oposição à exploração do homem pelo homem.
É por meio do trabalho coletivo e desalienado que a humanidade encontrará sua liberdade. Essa é uma abordagem na qual a apropriação comunitária dos frutos do trabalho permitirá que as pessoas realmente saboreiem a abundância. Tomar a terra, construir territórios e comunidades comprometidos com a recuperação dos biomas - essas são as principais tarefas de nossa geração para uma transição socioecológica emancipatória.
NOTAS DE RODAPÉ
- 1KRENAK, Ailton. Ideas to postpone the end of the world. São Paulo: Publisher: Companhia das Letras, 2019, p.22.
- 2GARCÍA LINERA, Álvaro. The plebeian power: collective action and indigenous, labour and popular identities in Bolivia. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 62.
- 3See Zimerman, A., Correia, K.C., Silva, M.P. (2022). Land Inequality in Brazil: Conflicts and Violence in the Countryside. In: Ioris, A.A.R., Mançano Fernandes, B. (eds) Agriculture, Environment and Development. Palgrave Macmillan, Cham. https://doi.org/10.1007/978-3-031-10264-6_6
- 4See FERREIRA, Joelson; FELÍCIO, Erahsto. For land and territory: paths of the peoples’ revolution in Brazil. Arataca (BA): Teia dos Povos, 2021
- 5For a reflection on fleeing to the forests as a construction of brown or quilombola refuges, see BONA, Dénètem Touam. Cosmopoetics of Refuge. Translated by Milena P. Duchiade. Florianópolis: Editora Cultura & Barbárie, 2020, p. 47.
- 6Clóvis Moura argues that the quilombola ‘roça’ was a space for polycultural agriculture, as opposed to the plantation, and abundance as opposed to the precariousness of slave life. See MOURA, Clóvis. The quilombos and the black rebellion. São Paulo: Editora Dandara, 2022, p. 47 and 49
- 7See Ceballos G. and Ortega-Baes P. La sexta extinción: la pérdida de especies y poblaciones en el Neotrópico. Pp. 95-108, in: Conservación Biológica: Perspectivas de Latinoamérica. (Simonetti J., R., Dirzo, eds.) Editorial Universitaria. Chile: 2011.
- 8Water scarcity affects approximately 40 per cent of the world’s population and, according to estimates by the United Nations and the World Bank, droughts could put 700 million people at risk of displacement by 2030’. See https://www.bbc.com/portuguese/geral-58319129. In Brazil, the CPT recorded 225 water conflicts in 2022, affecting 44,400 families. See https://www.cptnacional.org.br/downlods?task=download.send&id=14292:conflitos-pela-a-gua-2022-tabela-si-ntese&catid=6
- 9Ramos Júnior, D. V., & Santos, V. P.. (2023). Energy crisis, water enclosure and resistance: the challenge of building political-epistemic communities. Revista Brasileira De História, 43(92), 29-46. https://doi.org/10.1590/1806-93472023v43n92-04
- 10The original expression from Brazil in fact refers to a sweet made of whole cane sugar, known as rapadura.
ARTIGOS RELACIONADOS
Sindicatos pela Democracia Energética e um caminho público para a soberania energética
Ambientalismo Radical dos Povos - Catástrofe e Luta Popular
Excedente e deslocamento, refugiados e migrantes
Elections in France - a victory that didn't happen
A batalha neoliberal pela reconstrução da Ucrânia
Olimpíadas do Rio e de Tóquio vendem uma ilusão
Lançamento do livro "Brasil-catastrofe" de Thiago Canettieri
8/1 Rebelião dos Manés: ou esquerda e direita nos espelhos de Brasília
O mundo está falhando com as crianças palestinas
Uberização e os direitos dos trabalhadores de aplicativos
Quando o mundo da emergência encontrou a crise climática
O futuro começa na África do Sul
As novas alianças estratégicas na luta pela terra
As bruxas mentirosas do Sudão
O futuro agrícola da África está na agroecologia
Alimento para o pensamento internacionalista
O imperialismo e o sistema agrícola do Iraque
“A solidariedade é a base de toda luta”
Soberania alimentar na década de 2020
Erahsto Felício and Neto Onirê Sankara
Neto Onirê Sankara é militante do MST e foi membro de sua liderança no estado da Bahia. É agricultor no Assentamento Popular Claudemiro Dias Lima (Jitaúna-BA) e trabalhou na Teia dos Povos como assessor de articulação. Pesquisa o Ambientalismo Popular e Radical dos Povos.