Fragmentos de 2013

by Três militantes na neblina

O convite para escrever sobre junho de 2013 dez anos nos coloca diferentes questões. Como escrever algo que não seja a repetição de platitudes à esquerda e à direita sobre aquele momento? Teríamos algo novo a dizer? 

Decidimos então rememorar alguns acontecimentos do período, colocar questões que nos apareceram no momento e outras que nos formulamos posteriormente.

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Um pequeno assentamento em Americana (SP) começou o ano ameaçado de despejo. O estranhamento era geral: Como um assentamento poderia ser despejado? A ameaça já vinha do ano anterior, quando a antiga proprietária conseguiu uma decisão para reaver a propriedade. Apesar das promessas, o INCRA hesitava em tomar medidas efetivas para garantir a permanência do assentamento. Quando caem por terra, uma a uma, as propostas apresentadas nas assembleias pelos dirigentes do Movimento dos Sem Terra, os assentados procuram algumas lideranças locais que haviam deixado o movimento com críticas dois anos antes. A partir daí, as ações se intensificam. Eles fecham estradas, protestam no escritório da presidência em São Paulo, pressionam o próprio MST. Nas palavras de um dos assentados, ‘nós temos uma tarefa: fazer o impossível’. De fato, tratava-se de fazer o que ninguém era capaz de vislumbrar: achar um caminho no meio daquela política de consenso para devolver a ação aos trabalhadores, sem esperar mais o resultado das infindáveis mesas de negociação. 

15 de janeiro. Os assentados ocupam a sede do INCRA em São Paulo. Todos sentiam que não era mais possível recuar, mas além disso, que era preciso continuar avançando. O que fazer? Não havia resposta pronta. O que não fazer, por outro, estava claro: não apostar mais nas negociações de cúpula, não abrir mão da radicalidade em nome de um suposto pragmatismo conciliador.

23 de janeiro. Assentados e apoiadores, de pequenos coletivos autônomos da cidade, ocupam o Instituto Lula. Em 2013, o ex-presidente era – de longe – a figura mais popular do país, depois de deixar a presidência com aprovação recorde. Por meio do Instituto, ele realizava palestras ao redor do mundo inteiro, a convite das mais diferentes empresas e organizações, abordando os desafios do combate à pobreza para plateias seletas. Ocupar aquele espaço significava pressionar o núcleo decisório do Partido dos Trabalhadores a agir em defesa do assentamento, era colocar a luta acima de acordos políticos de preservar a imagem do governo. Significava fazer o impossível para vencer. 

Para aqueles de nós que buscavam uma alternativa ao consenso colocado, por uma luta que passasse por fora das estruturas de cooptação, as lições pareceram claras. Era possível ousar, era possível recusar o consenso, era necessário não recuar. 

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Naquele janeiro, o Movimento Passe Livre de São Paulo tinha se renovado bastante. Havia muitos militantes novos, animados. A expectativa de ter um aumento de passagem rondava a cidade quando a imprensa anunciou que o reajuste ocorreria apenas em junho, atendendo a um pedido expresso da presidenta. O que fazer?

A primeira tarefa se impôs. O aumento foi adiado apenas na capital paulista; muitas cidades da região metropolitana reajustaram as passagens. Toda aquela nova geração de militantes foi ajudar a organizar atos em Cotia, Mauá, Osasco, Carapicuíba, Barueri, Caieiras, Francisco Morato, Franco da Rocha e Taboão da Serra, cidade em que o aumento foi efetivamente revertido. A experiência concreta da luta de rua nessas cidades médias contribuía não apenas para fortalecer a referência do MPL para uma parte da juventude urbana, como para formar, na prática, uma série de militantes, que aprenderia ali a organizar atos, a lidar com a repressão, a utilizar as vias urbanas como arma contra os gestores.

A segunda tarefa, nós inventamos. Planejar a luta contra o aumento: estudar todas as experiências de cidades que barraram o aumento ao longo da década anterior; mapear todos os grupos que poderiam participar da luta conosco; levantar todas as ações possíveis de se fazer na cidade. 

As conclusões a que chegamos passavam por promover, em, no máximo, duas semanas, manifestações radicais focadas na redução da passagem que saíssem do controle de nós mesmos. Decidimos anunciar desde o começo que não tínhamos controle sobre o que acontecia, trabalhar com o fantasma da cidade insurrecta para construir de fato a insurreição na cidade. Isso incluía ações concretas e uma construção discursiva: o primeiro dia de aumento amanheceu com pneus em chamas no ‘fundão’ da Estrada M’Boi Mirim, no extremo sul da cidade; pouco depois, a manifestação deu as costas para prefeitura e voltou a queimar pneus – mas dessa vez pensando na foto de capa dos jornais do dia seguinte. Tudo cuidadosamente planejado – mas só até a revogação do aumento.

Imaginávamos que se a mobilização saísse do nosso controle em São Paulo, lutas explodiriam por todo o país. Mas entre pensar nisso e ver milhares de pessoas nas ruas de Ouro Preto do Oeste, ou a Câmara de São João Del Rey ocupada por dias, existe um abismo. Começávamos a nos perguntar: ‘e se a gente ganhar?’. Muitos de nós respondiam, de pronto, que era a população nas ruas que decidiria como as coisas seguiriam. Mas como construir tais espaços de decisão? Seria melhor abraçar a difusão de pautas ou focar na questão do transporte coletivo? Para onde avançar? Como se organizar para tal? Perguntas que não soubemos responder.

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Conta-se que no dia 6 de junho, Fernando Haddad havia preparado uma comissão para receber um grupo de lideranças quando os manifestantes chegassem à frente da Prefeitura. A história é mal explicada, não só porque tal reunião não aconteceu, como porque o convite sequer chegou ao MPL naquele dia. Mas, segundo algumas versões, representantes do prefeito teriam inclusive descido até a concentração no Teatro Municipal para tentar algum contato prévio, em vão…

Em todo caso, é curioso imaginar a surpresa da equipe de Haddad quando o ato passou reto pela frente do prédio da Prefeitura e seguiu um caminho tortuoso, virando na Líbero Badaró e descendo em seguida pelo calçadão até o Vale do Anhangabaú. As janelas do Edifício Matarazzo certamente proporcionaram uma vista privilegiada para as chamas da barricada que fechou a saída do túnel e a multidão que tomou o Corredor Norte-Sul, concretizando a ameaça estampada no bandeirão lançado do alto do Viaduto do Chá: ‘se a tarifa não baixar, a cidade vai parar’.

Talvez fosse isso que o prefeito tivesse em mente quando afirmou à imprensa, dois dias depois, que havia procurado o MPL, mas o movimento teria recusado o diálogo. Em suas notas públicas seguintes, o movimento se esforçaria em desmentir o prefeito e dizer que estava aberto ao diálogo. Na manhã do dia 11 de junho, o grupo chegaria a protocolar um pedido de reunião com o prefeito.

Quarta-feira, 12 de junho. O Ministério Público convoca uma reunião de intermediação entre o movimento e o poder público. O MPL vai. Haddad e Alckmin estão em Paris e não enviam nenhum representante político, apenas quadros técnicos da pasta de transportes, sem poder para tomar decisões. A reunião termina com uma proposta de acordo: se o governo suspendesse o aumento por 45 dias, o movimento também suspenderia os protestos. No cálculo político dos militantes ali presentes, a redução provisória da tarifa já seria uma vitória e, dali a um mês e meio, o governo estaria em uma correlação adversa para tentar reeditar o aumento. Um sindicalista ainda completou: se o governo suspendesse o aumento, era só transferir a concentração do dia seguinte para o Ibirapuera e transformar o ato vira um beijaço de comemoração.

Mas será que o MPL estava certo nesse cálculo? E se Haddad ou Alckmin, de volta da França, acatassem a proposta? Aquele acordo não poderia ter enterrado a mobilização? Os militantes também pressentiam esse risco, tanto é que saíram correndo do auditório depois da reunião, para evitar qualquer foto que pudesse ser interpretada como sinal de conciliação. Contudo, o fato é que o governo ignorou o Ministério Público e a proposta foi esquecida.

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Parece detalhe, mas muda tudo: em junho de 2013 quase ninguém usava WhatsApp por aqui. Aliás, pouca gente tinha smartphone. Os militantes, em geral, preferiam os celulares mais velhos por hábito de segurança – basta lembrar do procedimento de tirar a bateria em reuniões, impossível nos aparelhos atuais. A maior parte da comunicação durante os protestos era feita por mensagens SMS ou ligações.

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Dois diretores do sindicato dos metroviários conversavam em um piquete em apoio à mobilização dos ferroviários. Um deles defendia que era necessário apoiar a luta contra o aumento, o outro falava que o vandalismo afastava a categoria. O segundo pergunta: ‘você acha que esses meninos aqui da CPTM apoiam esse tipo de coisa?’. Eles chamam os ‘meninos’ e perguntam: ‘O que vocês acham desses protestos?’ e eles respondem sem hesitar ‘Tem que quebrar tudo!’.

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17 de junho. Com a repercussão alcançada pelas imagens de repressão policial na quinta-feira anterior, uma multidão se esparrama pelo entorno do largo da Batata naquela segunda. Cartazes, gritos, rostos, roupas são ainda mais diversos que nos protestos anteriores. Um bloco encabeçado por membros de torcidas organizadas – que haviam se reunido num encontro histórico, junto com integrantes do MPL-SP naquele mesmo dia pela manhã – segue pela Marginal Pinheiros, com alguns milhares de pessoas, enquanto a maior parte dos manifestantes segue pela Faria Lima e pela Berrini até que trajetos se cruzem na Ponte Estaiada. Uma terceira frente não planejada se forma rumo à Avenida Paulista, que também seria completamente tomada. Cenas em que um grupo de manifestantes protege vidraças de pequenos bandos mascarados se repetem. Ao restabelecer os limites da ordem dentro da revolta, o mantra ‘sem violência!’ anunciava outras violências por virem. 

Pouco antes de alcançar a Estaiada, um militante recebe uma ligação. Um camarada atrasado avisava que tinha acabado de chegar à concentração do ato e procurava os demais, sem perceber que as faixas de frente estavam a alguns quilômetros de distância e uma multidão – talvez até hoje subestimada em seu volume – ocupava o atual eixo das finanças de São Paulo de uma ponta a outra.

Mais ou menos àquela altura, um menino que devia ter uns 15 anos avistava o bloco da Marginal de longe, junto com um grupo de amigos no Real Parque. Para alguns deles, aquela multidão ‘diferente’ parecia uma boa oportunidade para roubar carteiras e celulares. Depois de descer e se juntar ao protesto, a turma vê os manifestantes impedirem outros de furtarem e desiste de tentar algo do tipo, mas acompanha o bloco por um tempo na marginal. Pouco mais de dois anos mais tarde, aquele menino que se juntou ao ato por acaso, mas observou as faixas e cartazes com atenção e voltou para casa inquieto, participaria intensamente da ocupação de uma escola estadual em Paraisópolis.

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Terça-feira, 18 de junho. Um militante subia a Consolação – tentando em vão chegar à frente de um ato que já não tinha frente, e se dividia em inúmeros blocos que percorriam o centro e a Paulista – quando atende a ligação de uma jornalista: ‘você pode passar o telefone de alguém do MPL que esteja na Raposo Tavares?’ Sem saber de nada planejado para acontecer naquela região da cidade, ele demorou um pouco para processar a pergunta. Mais tarde descobriríamos, pelo relato de membros de um movimento de moradia que tinha ocupações na região de Cotia, que uma manifestação de cerca de 500 moradores havia bloqueado a rodovia.

Na mesma noite, outro camarada recebe um SMS: ‘estou na Ponte do Socorro, e você?’. Tempos depois, ao contar que participara dos atos, um colega de trabalho contaria a um militante que era ‘daquele pessoal que botou fogo nos pneus, travando o Rodoanel’.

Naquela terça, o que anunciávamos desde o começo dos protestos se tornara verdade: na Zona Sul de São Paulo, manifestações se sucediam por mais de 24 horas seguidas; ao menos 80 ônibus foram depredados; lojas foram saqueadas no centro e nas periferias; inúmeras avenidas e rodovias foram fechadas. Ao menos momentaneamente, os trabalhadores tomavam a cidade de assalto.

Dez anos depois, o que sabemos sobre os protestos anônimos que eclodiram nas periferias das grandes cidades brasileiras naqueles dias?

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Um dos militantes do MPL que ficara encarregado de dar entrevistas recebia os primos de outra cidade. Resolve levá-los em uma famosa pizzaria paulista na Vila Buarque. Era uma noite de julho e o salão estava particularmente cheio. Ao sentar-se, ele nota um certo rumor entre os garçons. Um deles o aborda: 

– Você não é o fulano? Do Movimento Passe Livre?

– Sou, sim.

– Queria dizer que a gente conversou aqui entre a gente, e estamos com vocês, viu? A gente não vai pro ato por conta do horário do trabalho, mas tamo junto!

O militante fica meio sem palavras. O que responder em uma situação dessas? Como conectar aquela conversa entre colegas de trabalho com as lutas práticas? Aquele ‘tamo junto’ era um reconhecimento de que o cliente também era um trabalhador? Ou carregaria justamente uma dissolução dos antagonismos de classe?  

Quando o cliente já saia do salão, o barman levantou o braço para o alto e gritou:

– A luta continua!

Uma janela estava aberta ali. Como saltar por ela? Como ir além da conexão pessoal entre a figura pública e aqueles trabalhadores? Poderiam eles se encontrarem lado a lado na rua, em horário de trabalho? Talvez numa greve geral que fosse além das convocações frustradas… Infelizmente essas questões sequer foram debatidas naquele momento.

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Três militantes na neblina

Três militantes na neblina fazem parte de um grupo de investigação militante que se define como exploradores do entorno, desconfiando dos mapas já traçados. Em busca de respostas além das respostas prontas, eles navegam sem horizonte à vista, reconhecendo a ilusão, mas sem abrir mão dela. Ao se depararem com tretas explosivas e fugazes, interrompendo fluxos e quebrando contornos bem definidos, o grupo desafia as formas que enquadraram o conflito social no passado. Inspirados pela multidão que tomou as ruas brasileiras em 2013, eles sondam a revolta que irrompe do cotidiano massacrante de trabalho nas cidades, trazendo a investigação para o centro da preocupação política. Seus textos estão disponíveis no site www.neblina.xyz
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