Post-scriptum sobre o décimo aniversário

by Paulo Arantes

Em Junho de 2013, a História voltou ao Brasil? Das três maiúsculas desse enunciado beirando o surreal, a primeira, depois de conhecer um pouco de tudo em matéria de consagração e vilipêndio em sua curta vida narrativa, talvez retorne do limbo a que foi relegada por gregos e troianos, menos pela data redonda do décimo aniversário e muito mais pelo metabolismo das sobras do pesadelo que nos assombra desde a catastrófica eleição de 2018. Voltaremos à conjuntura demoníaca que se abriu naquele momento, na excelente formulação de Felipe Catalani, escrevendo no day after. Não sei se ela se fechou, pelo contrário.

A segunda maiúscula, anunciando um retorno épico de algo cujo eclipse ninguém levou a sério, frisa o disparate e desperta a perplexidade padrão diante de enormidades como esta: como assim? 

Por último, a terceira é tanto mais óbvia e redundante quanto menos identificável foi se tornando seu presumível referente, de cuja existência aliás o Drummond de 1931-1934 chegou até a duvidar, “nenhum Brasil existe, acaso existem os brasileiros?”. Além do mais, dúvida poética modernista lançada justo na abertura de uma década em que a assim chamada desde então “realidade brasileira” seria descoberta e confrontada em meio aos escombros da República Velha.

Seria o caso de fechar esta adivinha reparando que não foi só a História que supostamente voltou há dez anos atrás. Segundo proclama a três por dois a história oficial cujo enredo foi retomado há poucos meses, o Brasil também voltou, e ao grande teatro do mundo, para começar. Pois aqui a adivinha se enrosca um pouco mais. Ocorre que esta mesma história oficial restaurada, que celebra o retorno do Brasil à sua identidade original, é a mesmíssima fabulação que atribui às Jornadas de Junho uma explosão negativa, tão intensa que provocou um eclipse nacional de dez anos. Conhecemos a canção: era uma vez uma Caixa de Pandora dentro da qual havia um Ovo, dentro do qual havia uma Serpente etc. Numa palavra, um eclipse de dez anos, uma década em que não se passa nada, salvo coisas de não, a começar pela violência política de uma deposição presidencial, fermentada na ambígua potência das ruas e das redes, aliás bivalente tal potência, a Hidra de Junho tinha duas cabeças. Não foi bem assim, não houve ligação direta como sabemos, não foi pouca coisa o que aconteceu no meio, como mostrou Rodrigo Nunes. Mas ao batizar com rara felicidade essa temporada inédita de som e fúria, de “extenso agora”, além de dar o troco à melancolia postiça do documentário de João Moreira Salles, deu vida nova a uma noção que ainda não sabemos identificar: por que “agora” e por que se estende no tempo? Alguma coisa aconteceu no coração do tempo brasileiro, notoriamente paralisado em 1964? Seja como for, a onda que levou embora e trouxe de volta a História, não pode ser a mesma que levou e trouxe de volta o país em sua inteireza, desta vez afirmativa. Sem falar, para voltar ao miolo do disparate de partida – um enunciado por enquanto sem pai nem mãe –, que a História não é uma enteléquia que ora se consuma e coincide com seu conceito, ora dá marcha ré até virar semente.

Como ficamos? Alinhamos um Acontecimento ainda não identificado. Um processo de temporalização desses mesmos acontecimentos e processos subjacentes a que os modernos darão o nome de “história”, mais ou menos às vésperas da Revolução Francesa. E por fim, o nome próprio de uma comunidade política imaginada (nos termos originais de Benedict Anderson), uma sociedade nacional, em suma, que não por acaso Marcel Mauss definiu certa vez como uma “espera em comum”. Espera que por sua vez transcorre num tempo social que é tudo menos homogêneo e linear (e nisto nos desviamos de um infeliz tropeço do Benedict Anderson de há pouco), pelo contrário, move-se aos trancos e barrancos conforme grandes expectativas se aceleram ou são revertidas. E para adiantar o argumento deste post-scriptum, Junho foi uma delas. A reviravolta, que para abreviar podemos chamar de bolsonarista, foi outra. Ainda que em sentido irremediavelmente contrários, ambas no entanto grandes expectativas, formando um só bloco agonístico e antitético, em suma, um “extenso agora” de dez anos, ainda por decifrar sob nova luz, que não as do progressismo iluminista, como vêm dizendo e reprisando em vão Miguel Lago e Pedro Rocha de Oliveira. Ora, numa determinada esquina do curso do mundo, esse “regime de historicidade” (François Hartog) se desmanchou. As datas variam, bem como o diagnóstico do fenômeno.

Pois bem. A maiúscula central com a qual abrimos esta Nota sobre o décimo aniversário nos permite, e mesmo obriga, a gravitar em torno da mais celebrada e escarnecida tirada a respeito desses substantivos monumentais, o “Fim da História”, que afinal vinha acompanhado de um ponto de interrogação, na existência do qual o estupor dos primeiros leitores não lhes permitiu sequer reparar. Fukuyama, ele mesmo. Ao qual só os muito tolos creditaram à insanidade triunfalista de decretar literalmente, com ou sem aspas de rigor, nada mais nada menos do que o fim da história, em princípio encerrada com o desmoronamento do mundo soviético e a vitória sem resto do bloco antagônico. Deu-se porém justamente o contrário da paz perpétua dos liberais, e nem foi preciso esperar pela réplica culturalista descalibrada de um Huttington para saber que os dividendos da paz seriam pagos noutra moeda. Houve até quem reconhecesse naquele juízo de época acerca de um mundo único no qual reinaria um capitalismo sem rival, por maior que fossem suas disparidades concorrentes – se capitalismo político ou de mercado, monitorado à distância –, quando trocado em miúdos, um verdadeiro e novo Discurso da Guerra, mais exatamente, guerras do fim da história. A saber, um continuum de intervenções militares – na verdade, guerras de escolha, além do mais assimétricas –, destinadas antes de tudo à manutenção da nova ordem mundial. No limite, operações globais de Garantia da Lei e da Ordem, para pôr na roda o eufemismo consagrado pelo artigo 142 da Constituição Brasileira de 1988, além de chamar a atenção para a amplitude daquele continuum abarcando num só traço inimigos tanto externos quanto internos, públicos-alvo em suma, como se a guerra pudesse ser também uma política pública, ou a matriz mesmo das que foram plantadas quando a dita História chegara ao seu fim.

Dito isso, duas palavras ainda sobre a dimensão da guerra naquele período de eclipse total das paixões políticas que estamos chamando de “fim da história”, com H maiúsculo, é claro. Segundo a linha divisória traçada por Fukuyama, do lado iluminado em que se reproduziriam as sociedades ditas pós-históricas, o flagelo da guerra entre as grandes potências teria ficado definitivamente para trás como uma relíquia bárbara, ao passo que na zona de sombra em que se debateriam as ressentidas sociedades históricas recalcitrantes, a guerra do povo miúdo recrutado por seus senhores de classe correria solta pelo velho trilho da história produtora de desastres. O fosso entre esses dois mundos pode ser medido de saída na Primeira Guerra do Golfo de 1991, pela incomensurabilidade do choque beirando o massacre entre uma nação armada nos tempos idos da periferia quente da Guerra Fria e uma máquina high-tech de profissionais executando um serviço de limpeza de terreno.

Daí a surpresa, decididamente fora de época e ainda por cima mais devedora do que gostaria dos esquemas de Fukuyama, surpresa surpreendente, por assim dizer, de um espírito forte como Adam Tooze, que ainda nas primeiras semanas da guerra da Ucrânia se perguntava: mas como assim, uma guerra saída do museu da competição entre grandes potências? Enfim, estava quase comprando pelo seu valor de face uma das conclusões arrevesadas de Fukuyama, segundo a qual não se poderia excluir a hipótese extrema de que algum homem forte, e fortemente armado, decidisse abrir à força as portas da história, cismasse de reintroduzir significado e propósito numa luta existencial por status perdido a recuperar. Um figurino sob medida para esse amontoado de clichês chamado Vladimir Putin.

Nada disso viria ao caso, pelo menos por agora, pois em nossa agoniada década brasileira de expectativas reviradas pelo avesso temos um encontro marcado com a Ucrânia, se Adam Tooze não tivesse reconstituído (Chartbook #109) a circunstância de uma troca intelectual naquelas primeiras semanas de guerra e que afinal lhe forneceu régua e compasso para compreender que todo “fim da história”, pois são muitos os tais “fins” desde que Hegel inventou o primeiro e mostrou a chave dos demais que porventura se apresentassem, cedo ou tarde termina e que toda invenção política consiste em saber reconhecer os primeiros sinais de que tal fim da história chegou ao fim. Não será demais prolongar o parênteses lembrando que no Prefácio à edição brasileira do seu recente Grande recuo, Paolo Gerbaudo, por sua vez, em meio à névoa da guerra e da emergência geral – da mudança climática ao buraco negro ucraniano – considera que as múltiplas crises superpostas que estamos vivendo demonstram que “a máquina da história voltou a funcionar”, fechando um período monocórdio de realismo capitalista e presentismo.

Voltando. Pois então, o nosso Adam Tooze conta que abriu os olhos enquanto choviam mísseis e engarrafamento de tanques se enfileiravam pelas estradas do inverno ucraniano, ao ler um pequeno livro que não peca pela falta de originalidade – seus autores corrigem até a vulgata hegeliana, como sugerido linhas atrás, pois cedo ou tarde um pé na porta dispara um restartThe End of The End of History (Hochuli, Hoare e Cunliffe). Os três autores são os primeiros a reconhecer que o título os precedeu exatos vinte anos, felizmente com o sinal trocado, num artigo homônimo de Fareed Zakaria poucas semanas depois do 11 de Setembro, celebrando o Fim do Fim da História como o renascimento superlativo de um novo Estado de Segurança Nacional e sua correspondente projeção de poder militar num planeta mais uma vez confirmado em sua condição de entorno estratégico norte-americano. Passemos. Poucos anos depois, enquanto os Estados Unidos enterravam um trilhão no Iraque, um ideólogo do Novo Século Americano, Robert Kagan, dava outra volta no mesmo parafuso na certeza de que basta uma guerra de escolha sem limites para reabrir as míticas portas da História (The Return of History, 2008). Aqui o ground zero estaria se deslocando do Grande Oriente Médio para os Bálcãs (Kosovo) e daí para o Leste Europeu. Passemos também, embora estejamos no caminho de Moscou, como outrora Napoleão. (Quem seriam os “dezembristas” do futuro?). Mas passemos antes de tudo às razões desse livrinho esperto se encontrar nos bastidores da frase hiperbólica pela qual começamos. Ressonâncias brasileiras, e sem forçar muito a mão. E se, na esteira do ano em que o mundo começou a sonhar perigosamente (Žižek), quebrando a pasmaceira da calma presentista dos dias, o nosso Junho anunciasse por sua vez algo como o nosso Fim do Fim? Mas não um recomeço qualquer. Para os autores, é evidente que o lapso temporal recoberto pela expressão “fim da história” se encerrou, anunciado em 2016 (Brexit + Trump) e confirmado em 2020 (covid-19), mas tampouco é evidente que tenha havido um restart à altura do nome (dado por Fukuyama, é claro) em meio a toda essa desintegração e deriva que se sabe, e suas respectivas respostas emergenciais na forma de incontáveis medidas de exceção. À primeira vista, caos sistêmico não tem cara de recomeço, nada que lembre uma disputa pelo futuro como se viu no entreguerras do século passado, travada à beira do abismo entre comunismo, nazi-fascismo e capitalismo de mercado, recém-falido na Grande Depressão, justo o contrário da “longa e escura noite do fim da história” (Mark Fisher) em que mergulhamos no fim da Primeira Guerra Fria. Seja como for, concluem os autores, depois de mapearem as marchas e contramarchas do perene tumulto político inintegráveis na Era Pacífica prometida por mais um adeus às armas, de uns anos para cá está claro que o Fim da História chegou ao fim sem que no entanto a História tenha recomeçado a sua escalada. Pouco importa, já vimos esse filme antes, não é o primeiro fim do Fim da História, assim dizem eles.

Tudo muito bizarro e extravagante? É ler para crer. Ler o capítulo-guia de nossos três autores, “Learning to Love The End of History”, de Todd McGowan, Emancipation After Hegel (2019). Não, não é o Dr. Strangelove aprendendo a amar a bomba, mas uma visão original e desbravadora da mais disputada das encruzilhadas especulativas hegelianas, nosso cavalo de batalha de agora, o Fim da História. Para Hegel, ele existe sim, mas é muito diferente de todos os clichês de senso comum a seu respeito. Trata-se de um limiar ultrapassado pelo encontro com a liberdade, definida como uma força demolidora da base mística de toda autoridade – como diria Pascal –, limiar assinalado pela confluência de três revoluções, Americana, Francesa e Haitiana, irreversível uma vez ultrapassado pois nenhuma nova ordem social baseada na liberdade se deixa ossificar. Daí a reviravolta na conceituação proposta: o Fim da História finalmente alcançado com as três revoluções também conhecerá o seu fim, relançando o próximo fim do fim, todos os fins da história terminam, e no caso por um renovado Big Bang político, que não por acaso os neoconservadores supracitados identificaram no reinício das guerras no tabuleiro das grandes potencias, que assim reinventam a Autoridade que a liberdade hegeliana voltará a demolir pela cunha da contradição. Tudo para lembrar o que está em jogo na ideia insistente de que vez por outra a história teria sido por assim dizer transcendida por um pós qualquer. Por último somos lembrados de que as visões de Hegel, ao contrário do seu decalque por Fukuyama, foram inspiradas por derrotas e não por uma vitória. E dando um salto à frente, McGowan arremata essa revisão surpreendente, alinhando Jihad e as ondas populistas de extrema-direita do nosso tempo no rol das reações neuróticas ao Fim da História, nos termos em que Hegel a concebeu, claro, como o fim da história fetichista da Autoridade. 

Deu-se então o curto-circuito que nos interessa. Sabe-se lá por qual concurso de circunstâncias, aconteceu de um dos três autores do cenário do duplo fim da história, Alex Hochuli, provar ser também um competente brasilianista, felizmente ocasional, cobrindo com regularidade e conhecimento de causa as peripécias brasileiras na sequência clássica da chamada agitação “antipolítica”, na verdade, o renascimento plebeu da política, por onde começa, na visão dos autores a passagem para o fim do fim onde presentemente vivemos. Nesses termos, nosso Junho entra em cena no quarto capítulo do livro, em que é descrito o desmoronamento político do mundo congelado dos vencedores de 1989. Como pano de fundo, a Pax lulista e as suas Great Expectations não cumpridas. Pode-se duvidar, inclusive suspeitar, de mais esta variante de um clichê clássico sobre revoltas populares – depois do pão, espera-se a manteiga. O que importa é o fato de terem identificado uma crise inaugural sem data para terminar, uma fieira de crises encadeadas no rumo de um desenlace berlusconiano, mas não só, haveria mais, para além da mera bufoneria do “último homem” (Fukuyama, mas também Nietzsche requentado). A cadeia alimentar do niilismo (versão Wendy Brown), culminaria em Bolsonaro.

A bifurcação que nos interessa entretanto é outra. Em suas cogitações de brasilianista político, Alex Hochuli finalmente se deparou com um fenômeno identificado ainda na primeira metade dos anos 1990 (a data importa, e muito, afinal o Fim da História acabara de entrar em cartaz), identificado e batizado por intelectuais do núcleo orgânico, de “brasilianização do mundo”, e sobre a qual publicou um artigo na American Affairs de maio de 2021.

Vale um breve resumo dessa reversão de expectativas, pois afinal é disso que se trata, para situar melhor a mudança de foco operada pela percepção bizarra de que a “história” poderia estar de volta, e nós no meio da fábula. Não saberia dizer ao certo quem primeiro recorreu àquele termo de comparação e índice seguro de rebaixamento. Como tomarei como referência maior os presumidos trinta anos gloriosos de consolidação do capitalismo do Norte do Atlântico vitorioso na Segunda Guerra, não surpreende, salvo pela precoce consciência crítica, que a certidão de nascença da expressão possa ser atribuída sem erro a um francês, aliás e por isso mesmo, bom conhecedor das “dualizações” que fraturavam sociedades ditas então avançadas, França, Estados Unidos e Inglaterra, retorno violento de algo recalcado particularmente visível nos bairros sensíveis das metrópoles, um despertar traumatizante para as sociedades que descobriram, à contracorrente do renascimento civilizador profetizado por Norbert Elias, que não eram nem coesas nem igualitárias, e muito menos pacíficas, dilaceradas por violências vindas de baixo e novas pressões repressivas pelo alto, encarceramento de massa em seus primórdios, por exemplo. Estou me referindo ao antropólogo Loïc Wacquant, um dos primeiros a se dar conta de que essa onda punitiva, desencadeada por sociedades nas quais o capitalismo parecia enfim ter dado certo, não mirava enclaves infrapolíticos, nem sobras coloniais do falecido Terceiro Mundo, tampouco expressões irracionais e atávicas de incivilidade da crescente ingovernabilidade dos públicos-alvo turbulentos, que então teimavam na demanda por emprego decente, escolas idem, moradia, acesso a serviços públicos e sobretudo polícia com menos truculência e esculacho, enfim, menos submarinos nucleares e mais saúde etc. Familiar, não? Como esta frase registrada pelo Guardian em 1992: “Se brigar com os tiras é a única forma de ser ouvido, então vamos brigar com eles”. Baderna pura. Tudo isso dito, e muito mais, Wacquant concluía sua conferência na Anpocs de 1993. Isso mesmo, em Caxambu: descontadas as evidentes decalagens históricas, indubitavelmente as metrópoles europeias e norte-americanas se brasilianizavam. Sem muito exagero e mal-comparando, um enorme e recorrente Junho sacudira uma grande miragem que chegava ao fim. Mas como o grande condomínio da Bomba – ela mesma, cuja explosão já anunciara o princípio do fim do futuro, bem como o início de uma época histórica para acabar com todas as épocas, dito só para lembrar com quantos significados se fazem um Fim da História, e isso desde Hegel – veio abaixo primeiro no sucateado mundo soviético, o estrondo daquela catástrofe geopolítica encobriu o crac-crac da fratura exposta que convertia o lado vencedor numa não-sociedade sem alternativa. Não creio estar forçando demais a mão, se observar que os trinta anos de capitalismo organizado, e organizado pelo Estado para impedir o segundo strike da Grande Depressão, foram o nosso primeiro Fim da História, sem tirar nem por, induzido inclusive por uma inconclusiva saída de guerra, aliás em dois tempos, pois começara em 1914. 

E aqui vamos nós: o que mais poderiam anunciar as rachaduras turbulentas da “brasilianização” – menos queda do que uma convergência no desmoronamento – do que um outro primeiro Fim do Fim da História? Pois uma geração depois, mais ou menos trinta anos, se quisermos, foi mais uma vez com esse mesmíssimo desfecho com o qual se defrontou o nosso Alex e prontamente o reconheceu na “brasilianização” em curso. A ser assim, daria até para dizer que desde 1945, e sempre na saída de um grande conflito mundial, pelo menos e com certeza, duas ondas se formaram nas quais se depositaram as Great Expectations do tempo. Para se ter uma ideia da dimensão das expectativas superpostas, basta lembrar que elas abrigaram, em decorrência da guerra, o longo e crucial processo de Descolonização, para mais adiante fazerem uma não menos momentosa experiência de reversão, como acabamos de assinalar no caso das três décadas gloriosas, como a nomeiam os franceses. (Não posso evidentemente puxar o fio material desse desfazimento, a começar pelas promessas de uma sociedade salarial que nunca se completa, seja dito para lembrar que esses grandes encaminhamentos das expectativas humanas, para dar o verdadeiro nome da Política, não são feitos apenas com a matéria de que são feitos os sonhos, embora também o sejam). 

Na saída seguinte, a da Primeira Guerra Fria, a bolha das Great Expectations cresceu até o limite da última utopia (Samuel Moyn), a dos direitos humanos e seus derivados, para esvaziar aos primeiros sinais de uma (segunda?) “brasilianização”, por sua vez sinal mais ruidoso de uma miríade de decomposições, bem elencadas por Alex em seu ensaio. No mundo europeu esse passo adiante foi encarado como uma “Grande Regressão” (sic). Tal o choque com a ascensão (sempre resistível ou irresistível…) da extrema-direita. Como lembrado, essa a data do mais recente Fim do Fim, sem recomeço à vista do que quer que seja que possamos chamar história com maiúscula: apenas protestos, revoltas, levantes e o que mais venha de sedicioso à esquerda ou à direita extrema, como Alex Hochuli encerra seu mapa da “brasilianização” do mundo, ao qual faltaria acrescentar as derradeiras contribuições do bolsonarismo, ou melhor, tendências de base às quais deu expressão plena, o novo sistema jagunço (Gabriel Feltran) e o capitalismo de capataz (Rodrigo Nunes), admitindo que sem Junho não haveria o grande despertar do cidadão de bem, primeiro “coxinha”, finalmente “patriota armado”. 

Sendo a Periferia o lugar em que o futuro se revela, chegamos todos juntos ao Fim do Fim da História, passamos a pulsar na mesma temporalidade, cuja mola propulsora voltou a acelerar no vazio de um “regime de historicidade” que alguns estão chamando de apocalíptico (Lazzarato), querendo dizer com isso, entre tantas outras coisas que se perdem na noite dos tempos, vontade de apertar o gatilho. Respeitada a natureza das metáforas, Junho foi esse gatilho, e continuou sendo durante dez anos. Dito isso, ainda não sabemos, e só nos resta imaginar, como nossos autores reagiriam à pergunta literalmente desaparafusada da qual partimos: a História voltou mesmo ao Brasil depois de Junho? 

*

Na explosão da primeira hora, o primeiro a cair por terra foi justamente a maiúscula da história. A mesma à qual Fukuyama erigira um monumento equestre – lembrai-vos de Napoleão em Iena sob a janela do filósofo. Só que se tratava, como lembrado, porém à contracorrente do hegelianismo prêt-à-porter, de uma profanação da base mística da autoridade. E foi justamente o que ocorreu. Como proclamaram militantes em meio à névoa da guerra que recomeçava, Junho quebrou o feitiço: “a história que parecia estar de férias, voltou – e passou a sacudir tudo”. Mas quem, ou o quê, exatamente, voltou de férias? E teria voltado para seu antigo ninho condoreiro às alturas? Se a História ainda fosse uma criança, a história seria outra. Me explico, com a mão de gato de Adorno, na tradução de Gabriel Cohn:

“À criança que volta das férias a casa parece nova, fresca, festiva. Nada se alterou nela, contudo, desde quando ela a deixou. Só que havia sido esquecido o dever que cada móvel, cada janela, cada lâmpada normalmente invoca, reconstituindo assim a sua paz sabática, e por minutos está-se em casa na sequência de quartos, câmaras e corredor, tal como no resto da vida só a mentira afirma. Não será outra, algum dia, a aparência do mundo, quase intacto na luz firme do seu feriado, quando não mais estiver sob o imperativo do trabalho e no retorno ao lar o dever for tão leve como o jogo nas férias.”
Deve ter sido um desses Dimanche de la Vie que Raymond Queneau vislumbrou ao preparar a edição das aulas do Kojève sobre a Fenomenologia. Como na hora agá minúsculo de Junho também deve ter sido esse o sentimento do mundo prevalecente, que sem erro os hierarcas da esquerda oficial logo farejaram, o tiro curto e sem futuro dos desvios infantis de sempre. Não parece nada casual, pelo contrário, quase uma questão de método, que o “sinal da virada” também compareça em Bloch metaforizado por uma recordação infantil, a memória de crianças saltando quando, rasgando a sala silenciosa e oca, a campainha da casa soava: e se aquilo que obscuramente se tem em mente, aquilo que procuramos e que, por sua vez, nos procura, tiver chegado? O som dessa campainha permanece em cada ouvido, um chamado vindo de fora no qual ressoa “um novo tempo”. A força das coisas entretanto logo ensinou que a expectativa por si só não traz consigo esse tempo novo. Ou por outra, esse novo tempo brasileiro se apresentou sim e já dura uma década, dez anos de uma conjuntura demoníaca pedindo identificação. Mas esta, literalmente, já é uma outra história. (Continua, claro)

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Paulo Arantes

Paulo Arantes é filósofo. Em 1998, aposentou-se do cargo de professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, onde lecionou por trinta anos. Seus livros incluem: Hegel: A Ordem do Tempo, Ressentimento da Dialética e, mais recentemente, O Novo Tempo do Mundo. Ele é um associado do Alameda.

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