Sindicatos pela Democracia Energética e um caminho público para a soberania energética

por Lala Peñaranda & Sabrina Fernandes

A implementação de energia renovável em todo o mundo ocorre em um contexto de grandes desigualdades. Os atuais investimentos governamentais e privados ampliam as lacunas existentes ao favorecer investimentos desde o Norte Global, onde os países já industrializados têm pressionado para eletrificar suas redes de uso intensivo de energia por meio de programas de crescimento verde baseados em ciclos de extrativismo e de dependência no Sul Global. Esse contexto levou ao ceticismo dos trabalhadores em relação a empregos e a treinamento nos setores verdes, enquanto os planos de descarbonização das redes elétricas nacionais não dão garantias de acesso confiável e justo às energias renováveis pela população. O esforço para realocar os debates sobre a "transição justa" nas organizações de trabalhadores e, ao mesmo tempo, conectar suas demandas a setores e preocupações internacionais exige que movimentos sociais, sindicatos, partidos e cientistas se unam na elaboração de estratégias abrangentes para uma transição energética internacional justa, com base nos princípios da democracia energética e da justiça ambiental e territorial.

A Trade Unions for Energy Democracy (TUED - Sindicatos pela Democracia Energética) surgiu em 2012 para combater as políticas que haviam tomado conta dos debates sobre clima e empregos sob forte influência dos combustíveis fósseis e do setor privado em geral. Atualmente, a TUED representa trabalhadores em 47 países por meio de 120 órgãos sindicais e 4 federações sindicais globais. Ao fazer a ponte entre os debates do Norte Global e do Sul Global, a TUED se esforça para construir uma visão e uma estratégia comuns, embora as situações e perspectivas dos trabalhadores sejam diferentes de país para país. Ao promover um caminho público para a transição energética, a TUED lida com debates difíceis sobre a propriedade da energia, o desenvolvimento tecnológico, o futuro do trabalho e como transformar o setor energético quando alguns países consomem muito mais do que outros. Esta entrevista com Lala Peñaranda, da TUED, foi realizada em setembro de 2024 e seu conteúdo foi editado para o formato do dossiê.

Sabrina Fernandes: Muito tem sido dito, inclusive em declarações oficiais de governo e em espaços globais de deliberação sobre as mudanças climáticas, como as Nações Unidas, sobre a importância de incluir os trabalhadores nos debates sobre a transição energética. Isso é uma resposta à crítica dos defensores da transição justa de que as empresas e os formuladores de políticas estão considerando a descarbonização e a eletrificação, por exemplo, sem levar em conta os trabalhadores? Como a TUED garante que os trabalhadores estejam envolvidos de forma significativa na Transição Justa, além da participação superficial? 

Lala Peñaranda: Essa é uma das questões mais centrais da Transição Justa. Acho útil usar a distinção feita em um documento de trabalho da TUED de 2018, "Trade Unions and Just Transition: The Search for a Transformative Politics". Há abordagens de "diálogo social" e "poder social" que os sindicatos estão adotando nos espaços da Transição Justa - não como mutuamente exclusivas, mas ainda assim como abordagens diferentes. Uma abordagem de diálogo social argumenta que um diálogo produtivo entre governos, trabalhadores e empregadores pode levar ao "objetivo final de uma Transição Justa", como diz a OIT, de proporcionar trabalho decente para todos e não deixar ninguém para trás. A centralização dessa abordagem pressiona os sindicatos que trabalham em nível internacional a endossar efetivamente as principais premissas e a perpetuar a principal abordagem do establishment empresarial liberal e uma lógica baseada no mercado. Intencionalmente ou não, essa abordagem mantém os debates e as prioridades dos sindicatos presos a uma interpretação muito restrita e desmobilizadora da Transição Justa. Ainda mais importante, o Diálogo Social continuará a falhar na realização de uma transformação profunda porque ele rejeita, fundamentalmente, qualquer desafio substancial aos atuais arranjos de poder, propriedade e lucro, legitimando, em vez disso, um endosso acrítico de soluções "ganha-ganha" e "crescimento verde" para todos.
 

A abordagem do Poder Social baseia-se na análise de que as relações de poder devem ser desafiadas e transformadas em uma Transição Justa e que isso exige uma profunda reestruturação da economia política global. Embora a TUED não use mais a terminologia "Poder Social", os critérios básicos para a construção do poder dos trabalhadores na transição justa incluem elementos semelhantes: sindicatos independentes e democráticos, negociação setorial, descorporativização e democratização do conselho de administração (incluindo a presença de trabalhadores nos conselhos de administração de empresas estatais). Este último não se refere apenas ao poder de voto, mas também a estar a par das decisões de alto nível e politizar esses espaços. 

SF: Você pode nos dar exemplos disso, de como garantir que os planos de transição energética justa realmente envolvam as organizações e os movimentos dos trabalhadores, além da retórica institucional e dos espaços limitados de participação social? Definitivamente, há desafios quando se trata de envolver os governos nessa conversa, não?

LP: Um exemplo dessa abordagem pode ser encontrado no governo de Gustavo Petro, na Colômbia. O governo de Petro mudou o equilíbrio de poder dentro da diretoria da Ecopetrol, empresa petrolífera majoritariamente estatal, ao incluir aliados políticos que poderiam ajudar a implementar a agenda da Transição Justa, bem como o vice-ministro do Trabalho. Os membros do sindicato mais importante do setor, a Unión Sindical Obrera (USO), estão exigindo que o sindicato também seja representado. Um dos principais assessores do Ministério da Fazenda sugeriu que os sindicatos incluíssem a representação dos trabalhadores na holding das empresas estatais para ajudar a moldar as políticas públicas. 

A força das grandes federações globais, como nossos companheiros aliados da International Transport Workers (ITF), depende dos vínculos entre seus afiliados. Para construir poder significativo dos trabalhadores é necessário desempenhar um papel de coordenação forte entre os afiliados, aprofundando a coordenação nas cadeias de suprimentos que os trabalhadores em transportes tornam possíveis. Há bons exemplos de federações globais que estão realizando esse tipo de trabalho: a Industrial Global Union realizou seminários de organização para trabalhadores do lítio nas cadeias produtivas e a Internacional de Serviços Públicos (ISP), uma das principais federações sindicais globais aliadas da TUED, tem organizado uma melhor coordenação de negociações para os trabalhadores da ENEL na América Latina e na Itália. 

Não há atalhos para a construção do poder dos trabalhadores, mas há algumas vias de organização que aumentam o poder dos sindicatos. No setor de energia, a formação de coalizões com usuários de energia e organizações habitacionais tende a ser particularmente eficaz. A organização de trabalhadores terceirizados em todo o setor de energia, incluindo o setor altamente precário de energias renováveis, em sindicatos também tem o potencial de multiplicar o número de membros e o poder estratégico. 

SF: É interessante que você mencione a Colômbia, já que o governo de Petro tem falado muito sobre a eliminação gradual dos combustíveis fósseis, liderando a região nesse tópico. Mas, é claro, também há críticas vindas de baixo e conflitos dentro da coalizão. Quais são os desafios para a TUED na construção de relacionamentos com governos progressistas e de esquerda? 

Seja em governos progressistas ou reacionários, os sindicatos e os movimentos sociais sabem que precisam manter a pressão e a luta do movimento. Caso contrário, até mesmo as políticas mais bem elaboradas serão manipuladas, diluídas, eliminadas ou distorcidas por interesses arraigados e pelo status quo. 

Na América Latina, os movimentos trabalhistas e sociais trabalham arduamente para colocar os progressistas em cargos públicos, mas depois se deparam com a falta de infraestrutura política para transformar as demandas dos sindicatos e dos movimentos em programas políticos e legislação. Com algumas exceções, os sindicatos em todo o mundo não têm canais permanentes para discutir políticas e demandas de energia com autoridades eleitas e funcionários públicos. Nesse contexto, Bolívia, Colômbia e México oferecem experiências limitadas, mas valiosas, na criação de canais semipermanentes. Um caso particularmente inspirador é o da criação, no ano passado, pelo movimento trabalhista chileno, de uma Confederação de Trabalhadores de Empresas Estatais. A Confederação está buscando atingir um número de membros de cerca de 45.000 trabalhadores e inclui a representação de sindicatos dos setores de petróleo, metrô, cobre e portos. Suas metas incluem a recuperação e a restauração de empresas estatais que foram privatizadas no passado e a expansão da propriedade pública para outras áreas da economia. 

SF: Mas existe o risco de despolitização e marginalização dos trabalhadores ao lidar com o Estado?

LP: É verdade que a visão da Transição Justa está sujeita a uma despolitização generalizada e à marginalização dos trabalhadores, mas acho que o fato de nos concentrarmos em alternativas e exemplos positivos ajuda a combater isso. O envolvimento da TUED com funcionários públicos progressistas nos setores de energia em toda a América Latina influenciou profundamente a forma como vejo o trabalho e a estratégia climática hoje.

SF: No setor de energia, ficou claro que é importante envolver tanto os trabalhadores que já trabalham com energias renováveis quanto aqueles que podem continuar no setor de combustíveis fósseis por mais tempo. Como os trabalhadores do setor de combustíveis fósseis podem ajudar a pressionar pela necessária eliminação gradual dos combustíveis fósseis? Você acha que isso ainda é um desafio para os sindicatos de trabalhadores do setor de petróleo, especialmente em países onde a produção de petróleo está fortemente associada à noção de soberania e de desenvolvimento? 

LP: A TUED apoia os sindicatos na definição e no cumprimento de metas ambiciosas ao longo de um "Caminho Público" em direção à descarbonização, à desmercadorização, ao planejamento democrático da transição energética e a uma ampla transformação social. Naturalmente, a trajetória de um determinado país reflete a realidade de sua matriz energética, economia, história colonial e geografia. 

Do ponto de vista estritamente da descarbonização, países como o Uruguai obtiveram um sucesso notável ao alcançar um setor de energia 95% renovável para seus 3,4 milhões de habitantes em pouco menos de 10 anos. Para os trabalhadores da concessionária estatal, avançar em um caminho público exige desafiar a privatização que acompanhou essa rápida expansão. A concessionária pública, UTE, absorveu os riscos, as empresas privadas embolsaram os benefícios, os usuários de energia pagaram a conta e a estabilidade da rede foi comprometida. O processo de descarbonização promoveu também uma transição de modelo de geração de energia estatal para um modelo em que mais de 80% da capacidade renovável instalada está nas mãos de empresas privadas. 


No geral, a grande maioria dos sindicatos de energia com os quais a TUED trabalha no Sul Global defende uma abordagem de "declínio administrado" para a descarbonização e pede que os países mais ricos acelerem sua respectiva descarbonização. Isso reflete uma tentativa de lutar em várias frentes simultâneas: justiça social, econômica e da dívida, uma estratégia climática e energética planejada e a oposição às pressões e imposições da liberalização da energia verde.  

Em 2021, a demanda global por geração de eletricidade aumentou 5,4%, e 59% do novo aumento da demanda foi atendido pela queima de carvão. A organização de um Caminho Público liderado por sindicatos na região da Ásia-Pacífico, que responde por 82% da geração de carvão do mundo, apresenta desafios e oportunidades muito diferentes da América do Sul, onde a energia hidrelétrica fornece 45% de seu fornecimento de eletricidade. 

SF: No Sul Global, esse é um contexto de luta pela descarbonização, enquanto as ideias de soberania e desenvolvimento continuam bastante associadas às operações e à receita do petróleo. Tem alguma ideia de como conectar a descarbonização com outras prioridades sociais que ajudem a criar coalizões e uma forma mais sistêmica de pensar em alternativas? 

LP: Um exemplo notável de um sindicato que luta pela eliminação gradual em uma economia local dependente do carvão é o Sintracarbon, um sindicato de trabalhadores do carvão na Colômbia. Uma confluência de fatores contribuiu para esse caso, incluindo uma relação de maior confiança com a agenda de Transição Justa da administração de Petro e o amplo apoio da comunidade às suas demandas de "fechamento responsável de minas" no contexto do fechamento repentino de minas multinacionais e das demissões resultantes. 

Uma rede de energia robusta e justa exige planejamento e coordenação em todas as escalas de geração e entre elas. Os sindicatos têm desempenhado um papel importante ao ajudar a conectar as comunidades à rede ou a criar suas próprias comunidades. Na Colômbia, há um debate sobre o programa do governo de "comunidades energéticas" e a visão de "energia comunitária" liderada por movimentos sociais e ambientais, como o Rios Vivos. 

Isso vai ao cerne da formação de coalizões. Sou simpática ao argumento de que uma transição exclusiva para o setor de energia é impossível devido à natureza da energia, que a incorpora a todos os setores e formas de reprodução social. Como um movimento dedicado à libertação da classe trabalhadora, por que perderíamos a oportunidade de ampliar o alcance e o escopo de nossas demandas? O movimento de trabalhadores ascende e descende de acordo com a força e saúde da esquerda e dos movimentos mais amplos da classe trabalhadora. 

Superficialmente, há alguns pontos de conexão urgentes, mas mais óbvios e diretos na luta: organizar trabalhadores terceirizados e do setor informal, construir com sindicatos de usuários de energia, incluindo associações de bairro e de inquilinos.

Embora os sindicatos tenham muito a ganhar ao olhar e construir para fora, na TUED realmente vimos a extrema necessidade de também "voltar" aos princípios básicos de "organizar, organizar, organizar" por meio de educação política, ação direta, mobilização de base e conexão com outros sindicatos dentro e fora de seus setores e fronteiras. 

SF: A democracia energética é um elemento importante da transição justa e orienta como as organizações trabalhistas e aqueles que trabalham para envolvê-las em programas de transição veem as lacunas no acesso à energia e na produção de energia. O que define a democracia energética no trabalho realizado pela TUED e por que ela é tão importante para evitar uma abordagem corporativa da transição energética?

LP: Na TUED, discutimos a necessidade de os sindicatos desenvolverem uma "estratégia abrangente de recuperação". Isso começa com a reversão das políticas neoliberais de energia. Por exemplo, o governo de Andrés Manuel López Obrador (AMLO) busca reverter a reforma energética de seu antecessor, Enrique Peña Nieto. Esses são exemplos de democracia energética porque fortalecem o mandato público das empresas de propriedade pública. A aplicação de um mandato pró-público inclui requisitos claros para que as empresas públicas de energia atendam às necessidades da população e promovam a justiça ambiental na transição energética. Outro requisito do mandato pró-público é desenvolver mesas de diálogo permanentes com as comunidades para obter seu consentimento para os produtos energéticos, incluindo o consentimento livre, prévio e informado do consentimento indígena. A análise e a pesquisa da TUED compartilham experiências bem-sucedidas entre sindicatos nessas etapas ao longo do "caminho público" rumo à democracia energética. 

Em segundo lugar, precisamos evitar uma maior neoliberalização do setor energético. Para isso, é preciso acabar com uma das principais forças que pressionam por soluções de mercado, as políticas de ajuste estrutural verde das instituições multilaterais de empréstimo, que contribuíram para a corporativização da energia nos países do Sul Global. Por exemplo, os "incentivos políticos" para empréstimos de projetos de energia verde incluem a liberalização do mercado de energia, inclusive programas de "pegar ou pagar". A TUED Sul, uma plataforma da TUED que reúne sindicatos do Sul Global, realiza reuniões de políticas regionais dedicadas à criação de programas de políticas comuns que abordem os desafios e as oportunidades em uma região. Realizamos três reuniões de políticas regionais para as regiões da Ásia-Pacífico, África e América Latina e Caribe, nas quais reunimos sindicatos, bem como centros de pesquisa aliados e representantes de governos progressistas da região. 

SF: O envolvimento de comunidades amplas e de coalizões de energia também ajuda a denunciar a tendência atual de redução de riscos pelo Estado para as empresas, não? Sabemos que, em muitos países, uma proporção cada vez maior de energias renováveis na matriz energética, principalmente elétrica, tem vindo por meio de investimentos privados. As corporações se promovem como fornecedores verdes, mas suas operações e infraestrutura também podem ser silenciosamente subsidiadas por parte do Estado, diminuindo os riscos privados de investimento. Você poderia explicar por que esse modelo é tão contraproducente para a democracia energética e para liderar efetivamente a transição energética no ritmo e na direção necessários?

LP: O casamento entre o Estado desregrado e o capital privado é um dos principais inimigos da transição energética atualmente. Na esquerda, políticas mal elaboradas resultam em desilusão e decepção. Na esfera liberal, a política orientada para o mercado disfarçada de progressista gera confusão e ressentimento. Esse modelo é contraproducente por vários motivos, inclusive porque atrasa as soluções reais. Por exemplo, a política Feed-In-Tariff, amplamente implementada em toda a Europa, envolveu governos que investiram muito no subsídio de projetos iniciais de energia comunitária para "iniciá-los". Quando os subsídios foram retirados, os projetos fracassaram. Isso resultou em perda de tempo, perda de fundos públicos e grandes ambições para ações que se mostraram equivocadas e insustentáveis.  

O déficit de investimento no Sul Global representa uma grande ameaça à capacidade dos países de atingir suas metas climáticas. Atualmente, os países em desenvolvimento recebem menos de um quinto dos investimentos globais em energia limpa. A iniciativa "de bilhões para trilhões" do FMI, destinada a reduzir o risco dos investimentos do Norte Global no Sul Global, fracassou na medida em que os fundos públicos falharam em seus próprios termos ao "catalisar" o investimento privado, pois este último percebeu "retornos" insatisfatórios. Em termos de ação climática, a estratégia de redução de riscos levou a uma construção mais lenta da infraestrutura de descarbonização, ao mesmo tempo em que desviou os fundos públicos dos tipos de programas públicos mais necessários para financiar uma abordagem de Caminho Público para uma Transição Justa. Em vez de "complementar" ou "catalisar" um ao outro, as condições de investimento do setor privado continuam a drenar fundos públicos que poderiam ser usados de forma mais eficiente e responsável.

SF: Como você vê as lições e abordagens em energia pública conectadas a outros setores da economia, fortalecendo os serviços públicos em geral, no esforço de financiar uma abordagem de Caminho Público?

LP: Uma das vantagens mais diretas de uma transição energética pró-pública é a remoção da motivação privada da equação e a garantia de tarifas justas, a eliminação da pobreza energética e o cumprimento da energia como um direito humano. Entretanto, o financiamento e a propriedade públicos, embora sejam requisitos para uma Transição Justa, não são suficientes por si só. Um exemplo comum é a suburbanização da vida nos Estados Unidos, financiada por dólares públicos e possibilitada pela infraestrutura rodoviária pública. Para evitar a individualização incorporada pela vida suburbana (mas que poderia se aplicar a outras infraestruturas, como a expansão da energia), os investimentos e projetos públicos devem socializar os benefícios que proporcionam. 

Essa lição sobre infraestrutura pública pode ajudar a informar a luta por serviços públicos sólidos em outros setores da economia. Em vez de legislar e financiar serviços públicos de forma isolada, uma visão ousada entende como esses serviços podem ajudar coletivamente a transformar a maneira como planejamos as cidades, organizamos o uso da terra, cobramos impostos e socializamos progressivamente os benefícios. A experiência de uma comunidade com seu hospital público local alimentado por energia pública pode ser melhorada ainda mais com o fornecimento coordenado de transporte público de qualidade, moradia pública, parques públicos e assim por diante. Algumas das melhores campanhas sindicais em prol dos serviços públicos refletem essa interconexão, e a ambiciosa visão política de uma sociedade melhor encoraja os organizadores, os trabalhadores e todos os que podem se beneficiar dela. Por exemplo, o Sindicato dos Trabalhadores do Petróleo da Colômbia tem apoio popular devido à sua participação nas greves cívicas que lutaram pelo acesso à água, justiça tributária, moradia justa e ao lado dos sindicatos de professores. Há um componente estratégico. Mas também a realidade de que "não há bons empregos em um planeta em extinção". 

Isso se traduz na análise compartilhada que temos com a Internacional de Serviços Públicos (ISP) de que serviços públicos fortes elevam o nível para todos e ajudam a coordenar a descarbonização de nossa economia. Também lutamos para criar uma rede intersetorial, com a participação de sindicatos dos setores de saúde, educação, transporte, varejo e construção, justamente porque a crise climática é uma questão transversal para os trabalhadores e porque os sindicatos estão estrategicamente posicionados em todos os setores para pressionar por políticas de descarbonização.

SF: Como parte dessa visão intersetorial, acho que um grande desafio por trás da construção e implementação de energias renováveis é garantir um processo justo nos territórios afetados, já que uma transição não pode ser justa se criar zonas de sacrifício verde. Por causa disso, as comunidades afetadas por parques eólicos e solares tem demonstrado sua oposição a esses projetos, mesmo que concordem com a necessidade de expandir as energias renováveis e eliminar gradualmente o uso de combustíveis fósseis em geral. Quais são as várias maneiras pelas quais um programa de democracia energética pode ajudar a conciliar as demandas para reduzir os impactos das energias renováveis e, ao mesmo tempo, expandir a matriz?

LP: Em todo o mundo, grupos indígenas e comunidades rurais têm entrado em conflito com desenvolvedores de projetos de energia verde que, segundo eles, roubaram terras, enganaram as populações locais e recorreram ao suborno e à força física para que seus projetos fossem aprovados. Dadas as pressões para expandir a infraestrutura de energia renovável, é muito provável que os conflitos entre comunidades e projetos aumentem rapidamente nos próximos anos. Por exemplo, a energia solar requer muito mais espaço do que a eólica para gerar a mesma quantidade de energia (aproximadamente 1 hectare de terra para 1 MW de energia solar). Na América Latina, grupos indígenas e comunidades rurais de Oaxaca, no México, a Biobío, no Chile, têm se mobilizado contra grandes projetos de energia eólica e solar. Alguns deles levaram ao cancelamento de projetos, como no caso da multinacional de energia ENEL, sediada na Itália, que cancelou um projeto eólico após um confronto de três anos com as comunidades indígenas Wayuu locais no norte da Colômbia.

Entretanto, isso claramente não significa que o bem-estar das comunidades ou dos trabalhadores e a descarbonização sejam mutuamente exclusivos. O fato de que os trabalhadores e as comunidades geralmente compartilham queixas e demandas significa que, quando trabalham juntos, eles podem informar formas mais equitativas de planejamento em torno da construção de energia renovável. Os investidores e os desenvolvedores privados geralmente são os principais beneficiários dos projetos, enquanto os custos sociais e ecológicos são absorvidos pelas comunidades indígenas e negras, pelos trabalhadores, pelos agricultores e pela população rural pobre. Os sindicatos estão estrategicamente localizados para apoiar a meta de expandir as energias renováveis públicas por meio de um planejamento equitativo e, ao mesmo tempo, reduzir seus piores impactos. 

Aumentar as campanhas de sindicalização no setor de energia renovável não se trata apenas de direitos dos trabalhadores, mas também de ter aliados em potencial em posições estratégicas dentro dos projetos. A maioria dos sindicatos da rede da TUED tem responsabilidade para com os movimentos sociais quando os direitos dos trabalhadores e os direitos das comunidades se sobrepõem e se unem. Um desses espaços de movimento é a Mesa Social Minero-energética y Ambiental por la Paz, na Colômbia, um espaço de coalizão nacional de movimentos trabalhistas, ambientais e outros movimentos sociais fundado pelo sindicato dos trabalhadores do petróleo para encontrar e construir alternativas ao modelo extrativista pró-mercado dominante. Muitos outros exemplos podem ser encontrados nos sindicatos que assinaram o Programa Sindical da TUED, que se compromete e pede que os povos indígenas garantam seu consentimento livre, prévio e informado ao desenvolver uma visão e um plano para seu relacionamento com os sistemas públicos de energia que protejam as leis e os tratados indígenas. 

No final, a luta por energias renováveis públicas é necessária não apenas para atingir as metas de descarbonização, mas também porque cria outra camada de responsabilidade para que os projetos atendam a um "público", que inclui comunidades indígenas, negras, de agricultores e de trabalhadores, bem como usuários de energia em geral.  

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Este artigo faz parte do dossiê de Transição Energética a ser lançado em março de 2025.

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Lala Peñaranda e Sabrina Fernandes

Lala é a coordenadora para a América Latina da Trade Unions for Energy Democracy (TUED) e atualmente está baseada entre a cidade de Nova York e Bogotá, na Colômbia. Ela estudou Estudos Urbanos na CUNY School for Labor and Urban Studies e está concluindo um mestrado em Direito e Economia da Mudança Climática na FLACSO Argentina. Antes do TUED, ela trabalhou como organizadora de inquilinos no Met Council on Housing, editora na NACLA e pesquisadora estagiária no International Center for Transitional Justice (ICTJ). Seus serviços de interpretação e tradução com a TUED e o escritório da Rosa Luxemburg Stiftung em Nova York se concentraram principalmente em questões ambientais, justiça habitacional, setor de energia e movimento trabalhista latino-americano.

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