Olimpíadas do Rio e de Tóquio vendem uma ilusão

por Juliano Fiori
Organizações esportivas desconsideram democracia e resistência das populações anfitriãs

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Naquele momento, as coisas pareciam estar caminhando muito bem. Mas o ar da noite estava repleto de ironia.

“Ah ah, uh uh – o Maraca é nosso”, cantava uma multidão de torcedores reunidos nas rampas de acesso, inevitavelmente vestindo verde e amarelo –e eu, em companhia do resto da delegação brasileira, aderi. Poucos minutos mais tarde, entraríamos no estádio para a abertura da Olimpíada do Rio, pulando e requebrando sob uma blitz de luzes e o olhar expectante de milhões de pessoas.

O Maracanã, é claro, não era realmente nosso. Construído como símbolo de modernização, o estádio havia sido um dia o templo universal do futebol brasileiro. Mas agora era um ativo privado, e aquela ocasião tinha sido preparada a fim de maximizar o lucro daqueles que haviam assumido sua propriedade.

Sorrindo e acenando, eu sabia ainda assim que aquilo era o apogeu do espetáculo. De fato, era o espetáculo do espetáculo —uma amostra deslumbrante da vida em sua forma comodificada. Nos dias seguintes, nós, os atletas, seríamos objetos de marketing para aqueles que investiram nos Jogos, que transformariam nossos corpos –esculpidos por anos de treinamento– em mercadoria visual. E, quer gostássemos, quer não, nós também havíamos sido recrutados como mercadores de uma ilusão.

Eu era ninguém ao lado dos titãs do mundo esportivo, com quem esbarrava no refeitório da Vila Olímpica. Mas, naquela noite, dentro do Maracanã, eu sentia que tinha tanto direito a celebrar quanto qualquer outro atleta. Merecíamos aquele momento; merecíamos nos sentir felizes.

A caminho do Maracanã, passamos por um estacionamento vazio, onde no passado o estádio de atletismo Célio de Barros havia abrigado campeonatos sul-americanos de atletismo. O estádio tinha sido demolido para permitir a construção de um complexo de restaurantes e lojas, depois abandonada.

Será que os jovens atletas locais, para quem o Célio de Barros era um segundo lar, mereciam ter destruídos os seus próprios sonhos de grandeza esportiva? Será que milhares de moradores da Vila Autódromo mereciam ser violentamente expulsos de suas casas para abrir espaço para o Parque Olímpico?

Para evitar que levantássemos tais questões publicamente, meus colegas de equipe e eu recebemos “treinamento de mídia” do Comitê Olímpico do Brasil. E fomos obrigados a assinar um código de conduta que proibia declarações sobre política e seu impacto nos Jogos.

No entanto, três semanas antes do começo da competição, nossas preparações foram interrompidas para uma encenação política. Passamos um dia cansativo viajando de São José dos Campos (SP) a Brasília (DF), e de volta, para que Michel Temer, que estava ocupando o Palácio do Planalto, pudesse fazer um discurso de menos de três minutos e meio de duração usando atletas brasileiros como pano de fundo.

“Quando vocês todos puderem ostentar as medalhas”, ele grasnou, “nós estaremos revelando um Brasil onde a democracia é estável, onde as coisas estão caminhando muito bem, onde as instituições funcionam”.

As coisas estavam caminhando muito bem.

A Olimpíada, fomos levados a acreditar, seria um tijolo na construção da “ponte para o futuro”. Se aquilo parecia pouco convincente vindo de um político tão manifestamente retrógrado, a mensagem nada tinha de novo. Ao defender a candidatura do Rio de Janeiro diante do Comitê Olímpico Internacional (COI), em 2009, Lula havia afirmado que “chegou a nossa hora”. “O Brasil merece”, ele declarou alegremente, depois que a vitória do Rio foi anunciada. O Brasil enfim havia sido aceito, ainda que tardiamente, nas fileiras da modernidade.

Mas mesmo então, em meio à fanfarra e jovialidade, antes que a rebelião tomasse as ruas, antes que a classe política revelasse suas entranhas sórdidas, não era preciso observar muito para discernir que, para a maioria dos brasileiros, a promessa da modernidade estava longe de ser realizada.

No século 20, a industrialização brasileira, incipiente e dependente, arrancou as massas de suas estruturas tradicionais sem lhes alocar um lugar na economia formal. Por quase três décadas, a economia brasileira vinha se desindustrializando, depois que a liberalização do comércio e das finanças gerou picos nos influxos de capital, supervalorização da moeda e uma queda na competitividade dos produtos industriais exportáveis.

A dívida externa, acumulada para compensar, terminaria por ser enfrentada por meio de um ajuste fiscal, deixando suas causas estruturais, bem como os lucros dos brasileiros mais ricos, quase intocados.

A redução da pobreza foi uma realização histórica, mas não permanente, dos governos do PT. Apesar de seus ideais progressistas, o PT foi incapaz de garantir para as massas uma instrumentalidade no desenvolvimento (e muito menos na superação) do capitalismo brasileiro. O partido optou em lugar disso por um projeto de inclusão consumista, construído sobre as fundações instáveis de uma sociedade em fragmentação –ou seja, sobre as ruínas da modernização.

Um desafio político central para o PT no governo era o de convencer os brasileiros de que, a despeito dos sinais de estagnação secular, ainda restava capitalismo suficiente para todos. No entanto, assim que o festival mundial das commodities chegou ao fim, a “proteção social” deixou de ser capaz de impedir que a maioria perdesse a fé. Foi então que políticos venais, em conchavo com o grande capital e conglomerados de mídia cínicos, agiram decididamente para remover o PT do governo.

Mas, como se afirmassem o terreno comum a toda a elite política brasileira, aqueles que assumiram o poder atribuíram à Olimpíada a mesma função histórica que o PT havia atribuído, disputando apenas a propriedade de seu legado.

Hoje, enquanto o atual presidente dá de ombros diante da morte de mais de meio milhão de compatriotas por um vírus pandêmico que ele propagou, aquilo que se seguiu à Olimpíada devia ser reconhecido como uma descida trágica às trevas. Em retrospecto, a Rio-2016, em todo seu espetáculo, não aparece como uma demonstração da modernidade brasileira –o momento em que nossa hora enfim chegou–, mas, sim, um último e desesperado esforço para sustentar a ilusão de que a modernidade continuava a ser um destino viável.

Desconsiderando as intrigas habituais da política brasileira, a presidência de Bolsonaro nada mais é do que o produto do fim de uma ilusão. Como Theodor Adorno escreveu certa vez, “a desesperança busca uma saída desesperada”: a aniquilação.

Bolsonaro nem finge se importar com a modernização. Ele se preocupa exclusivamente com o exercício niilista da violência, com a ministração da morte –um empreendimento em que se provou singularmente efetivo. Assim, ele se torna a resposta sistêmica a um superavit de trabalhadores que, dependentes da assistência do Estado, são considerados como obstáculo à acumulação, e que, a despeito de sua falta de organização, representam uma fonte potencial de volatilidade social.

Mas a sociedade grotesca que pôde dar poder a Bolsonaro não tomou forma subitamente. Consolidou-se com o tempo, e então se revelou plenamente enquanto o espetáculo se dissipava. Ela estava visível havia muito tempo na normalização da violência contra os trabalhadores sem terra, as populações indígenas e os negros pobres nas periferias urbanas. Era visível, em meio ao êxtase da Olimpíada: na aceitação da censura imposta pelo governo e da militarização das ruas do Rio; na expansão do poder comercial e político das milícias nos territórios que cercam o Parque Olímpico.

Se, hoje, o Estado neoliberal funciona como uma quadrilha, a administração das obras olímpicas refletiu e contribuiu para isso. Em numerosos casos, projetos de infraestrutura foram terceirizados para empreiteiras privadas que pagaram propinas a políticos governistas, antes de abandonarem a construção.

Essas trapaças encontraram uma contraparte na cultura sombria da burocracia internacional do esporte.

Em 2017, surgiu a informação de que membros do COI receberam suborno para votar em favor da candidatura olímpica do Rio, o que mina a noção de que o Brasil merecia sediar os Jogos.

No entanto, a escolha do Brasil também tinha um propósito sistêmico. A organização de megaeventos esportivos fora do Ocidente –na Coreia do Sul, na China, na África do Sul, na Rússia, no Qatar, no Brasil– não sugere só que as instituições internacionais estão conseguindo difundir uma cultura profissional do esporte.

Também contribui para o senso de que novos milagres de desenvolvimento são possíveis –o senso de que, no sistema capitalista, as coisas estão caminhando muito bem.

Isso retarda a desilusão inevitavelmente produzida pela compreensão de que a avaria da modernização na periferia pressagia uma crise generalizada. Que as democracias ocidentais tenham sido abaladas por rebeliões sociais na última década pareceria indicar que a desilusão já está repercutindo: a fragmentação que caracteriza a sociedade brasileira agora é amplamente perceptível nos países considerados como os desbravadores da modernidade.

Nesse contexto, o capitalismo exige espetáculos novos e mais extravagantes. Mas, ao atender a essa demanda, os megaeventos também se chocam com os elementos distópicos da realidade atual, expondo a decadência do esporte profissionalizado e das instituições internacionais que o usam a serviço da globalização capitalista.

À medida que esses eventos enfrentam resistência das populações anfitriãs cada vez menos dispostas a sediá-los, organizações como o COI e a Fifa, que dependem da receita que eles geram, demonstram sua desconsideração pela democracia.

Olimpíada de Tóquio, que começa no dia 23 de julho, talvez ofereça a demonstração mais clara disso até o momento. Com previsões de uma nova onda de contágios pela Covid-19, uma maioria significativa dos cidadãos japoneses quer que os Jogos sejam cancelados. Mas um primeiro-ministro enfraquecido, pressionado pelo COI, manteve a competição.

Uma vez mais, os atletas, entre os quais muitos contra quem competi cinco anos atrás, estarão empregados na produção de um espetáculo, ainda que mediado por condições políticas e imperativos culturais diferentes. Mesmo aqueles dentre eles que se incomodam com isso se sentirão empolgados por participar do mais augusto evento poliesportivo do planeta.

Em companhia dos fãs do esporte, eles provavelmente também sentirão alívio por, depois de um ano de perturbações, entre as quais a suspensão dos Jogos em 2020, estarem a ponto de competir de novo.

O esporte de alto rendimento teve sua profundidade cultural roubada pela comercialização, sendo transformado em um produto liso, homogêneo e lustroso. Mas continua a conjurar alguma coisa de sublime: não, como é costume dizer, nas demonstrações de gênio ou habilidade que procuram garantir vitórias ou entreter espectadores; mas, pelo contrário, naqueles momentos em que o inesperado e o incompreensível interrompem o percurso ensaiado ao sucesso.

Cinco anos atrás, naquela noite da cerimônia de abertura, sob as luzes brilhantes do Maracanã, uma forte convicção de que as coisas não estavam caminhando nem um pouco bem temperava minha felicidade. Mas, poucos dias mais tarde, quando entrei em campo para competir, foi a antecipação de tais momentos sublimes que me deu uma sensação breve, e talvez ilusória, de estar livre daquilo tudo.

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Artigo publicado originalmente na Folha de São Paulo em Julho de 2021.

Juliano Fiori - alameda.institute

Juliano Fiori

Juliano Fiori é um ensaísta com interesse particular na economia política da crise, na ideologia humanista e sua história, e na filosofia do tempo. Ele mora no Rio de Janeiro, onde, em uma vida anterior, representou o Brasil nas Olimpíadas.

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