Dez anos antes de junho de 2023

by Gabriel Tupinambá

Esse mês foi marcado por uma enorme produção de análises discutindo a extensão e o sentido de Junho de 2013 e do ciclo nacional de protestos que agora completa 10 anos. A pluralidade de abordagens representada nos livros, debates e artigos lançados nos convida não só a revisarmos alguns dos lugares comuns que se sedimentaram ao longo da última década, mas também a recuperarmos uma distinção que pode nos ajudar a navegar todo esse novo material. Afinal, há uma diferença entre escrever a respeito de um processo político e escrever como parte desse processo, isto é, escrever politicamente – e isso não tem nada a ver com se dizemos algo positivo ou negativo, se nos aliamos a essa ou aquela organização ou movimento, ou mesmo se enaltecemos sucessos ou apontamos fracassos. 

A distinção depende, na verdade, do destino que damos às contradições, desafios e aos limites turvos de um momento histórico. Quando escrevemos “sobre” um momento político, em geral nossa tarefa é dar conta de suas características a partir das demandas de nossos leitores – demandas por mais informação, por certos princípios e valores. Nosso trabalho é o de representar um momento histórico para alguém que está do outro lado de uma divisa temporal e não tem portanto acesso direto ao seu significado. Quando escrevemos politicamente, no entanto, todos esses elementos mudam de lugar: trata-se não mais de demarcar uma distância entre o passado e o presente, mas de encontrar dentre as características daquela sequência política os sinais de sua continuidade com o nosso próprio momento. Isso implica, muitas vezes, em uma inversão paradoxal: ao invés de utilizarmos as exigências do leitor bem pensante para julgar o que seria uma avaliação adequada do passado, são as questões que o passado deixou em aberto que servem para produzirmos uma nova avaliação de nós mesmos, uma nova representação possível de nossos leitores – que são portanto convocados a continuar pensando aquilo que nos liga ao que veio antes. Seja há 10, 100 ou 500 anos atrás.

Permitir que um processo político jogue luz sobre o presente não significa, como adiantamos, necessariamente afirmar que os mesmos métodos, atores ou os mesmos objetivos políticos permanecem relevantes antes e agora. Ao contrário, muitas vezes é uma operação que nos demanda abandonar ilusões ou confrontar a real extensão de nossos fracassos. Trata-se, antes de tudo, de propor uma aliança entre o que permanece impensado em um evento coletivo e a nossa capacidade coletiva de continuar a pensar. É esse o espírito que anima o instituto Alameda tanto em seu projeto de criação de um arquivo nacional de registros audiovisuais de Junho – buscando promover o reencontro de pesquisadores e organizações políticas com a dimensão ainda invisível das Jornadas – quanto ao comissionar quatro novas contribuições sobre o décimo aniversário dessa sequência política. 

O filósofo Paulo Arantes, em seu Post-Scriptum sobre o décimo aniversário, defende que é o confronto ainda incompreendido com “um novo tempo brasileiro” que nos une a Junho: “dez anos de uma conjuntura demoníaca pedindo identificação”. Por sua vez, em Para escovar a história a contrapelo: junho, uma montagem, Carla Rodrigues recupera por dentro próprios impasses do movimento feminista o fio de uma continuidade que liga as contradições daquele momento e do nosso. Para a filósofa, Junho é “um filme em movimento, ainda em processo de montagem, cujas cenas finais não aconteceram na rampa do Palácio do Planalto nem em 1 de janeiro nem em 8 de janeiro de 2023”.

Ludmila Abílio, em seu O ovo do ornitorrinco, retoma lições cruciais do sociólogo Francisco de Oliveira em um esforço de distinguir as transformações profundas no mundo do trabalho que preparavam o terreno para Junho da capacidade de resposta – tragicamente assimétrica – que a esquerda e a direita apresentaram quando confrontadas com esses novos desafios. Afirma, assim, que “o ovo da serpente que começava a ganhar corpo em 2013 é outro, não o do ornitorrinco que saiu às ruas” – e se o Bolsonarismo nasceu do primeiro, e permanece conosco, cabe a nós entender as características desse segundo animal com o qual também temos que lidar hoje. Finalmente, em Fragmentos de 2013, o coletivo Grupo de Militantes na Neblina pulveriza a busca pelos traços que nos conectam a Junho, oferecendo diversas vinhetas em que questões em aberto, decisões reavaliadas, momentos sutis e continuidades inesperadas demonstram a capilaridade temporal e espacial das Jornadas de Junho. Escrevem: “Uma janela estava aberta ali. Como saltar por ela?”

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Gabriel Tupinamba - Alameda Insititute

Gabriel Tupinambá

Gabriel Tupinambá é um filósofo e psicanalista praticante, do Rio de Janeiro. Ele também é membro do coletivo de pesquisa autônomo Subset of Theoretical Practice. Seus principais interesses intelectuais e políticos hoje giram em torno do desenvolvimento de novas ferramentas para a organização política e para navegar pelas complexidades da luta política em nosso mundo fragmentado. Gabriel é o diretor de Estratégia Social da Alameda.
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