As novas alianças estratégicas na luta pela terra

by Maikel da Silveira

Defendendo a aliança preta, indígena e popular, a Teia dos Povos transforma a luta por terra e território no centro de um projeto revolucionário que se propõe a encarar a emergência climática com propostas concretas e práticas inovadoras.

A Teia dos Povos é uma articulação de comunidades que aproxima movimentos sociais organizados em territórios para criar e fortalecer laços de solidariedade entre eles, tendo a agroecologia como um de seus fundamentos e a soberania dos grupos articulados como horizonte. 

Dando centralidade à luta pela terra (um solo para plantar e produzir o sustento) e pelo território (um lugar para habitar e pertencer), a Teia propõe uma aliança “Indígena, Preta e Popular” capaz de garantir soberania –hídrica, alimentar, energética e pedagógica – para os diversos povos ligados a ela, com geração de renda e garantia de segurança. Criada em 2012, durante a 1º Jornada de Agroecologia da Bahia, realizada no Assentamento Terra Vista, em Arataca (BA), é composta por representantes Pataxós, Tupinambás, Pataxó Hã-hã-hãe, quilombolas e campesinos de diversos movimentos. O respeito à heterogeneidade dos diversos povos articulados, donos de saberes tradicionais e modos de organização próprios de seus territórios, é um dos pilares da Teia, que busca encontrar nas diversas lutas por meio de diálogos horizontais, da troca de conhecimentos e da solidariedade.

Foi para ver a Teia mais de perto que visitei, no último mês de setembro, o assentamento Terra Vista, a convite do Instituto Alameda e tive a oportunidade de conversar com Joelson Ferreira, o Mestre Joelson, pioneiro do assentamento e liderança da Teia.   

Sede do evento que culminou na fundação da Teia dos Povos, em 2012, o assentamento Terra Vista é hoje uma espécie de farol para a Teia dos Povos, funcionando ao mesmo tempo como referência, inspiração e espaço de aprendizado e acolhimento. 

Resultado direto da luta dos militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na Bahia, que no dia 8 de março de 1992 ocuparam a Fazenda Bela Vista, de 913 hectares, o assentamento Terra Vista só foi fincou raízes definitivamente em 1994, depois de resistir a cinco ações de despejo. Marco entre as conquistas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Brasil, se destaca por representar uma vitória no coração da região cacaueira, historicamente marcada pelo latifúndio, pelo coronelismo e pela exploração brutal de gerações e gerações de trabalhadores rurais empobrecidos.

Terra, território e autonomia

No caderno de formação número 30 do MST, a territorialização é definida como “o processo de conquista da terra”. Dessa perspectiva, cada assentamento conquistado é visto como uma fração do território dos Sem Terra. Para o movimento, a luta pela terra levava à territorialização, “porque ao conquistar um assentamento, abrem-se as perspectivas para a conquista de um novo assentamento”. O tipo de terra conquistada, sua localização, as características da população do entorno, sua distância em relação aos centros urbanos, tudo isso se tornava secundário, nesse contexto. A quantidade era mais importante que a qualidade, por assim dizer. 

Como colocou Joelson Ferreira em um texto lapidar, escrito pouco antes de deixar a direção do MST, intitulado Começar de novo: “Como se vê, o conceito é o que é medido com o tempo – apenas um processo em cadeia sem nenhum conteúdo abrangente que lhe assegura a funcionalidade do sistema e sua manutenção”. Em vez de “de perseguir a territorialização abrangendo todo o país quantitativamente”, portanto, “era preciso “proceder em centros estratégicos, como locais de potencial energético, de reservas minerais ou grandes conglomerados urbanos”, defendia Joelson. Ou seja, locais muito parecidos com aquele escolhido, anos antes, pelos pioneiros do Terra Vista, dentre os quais ele se encontrava.  

Uma leitura desatenta poderia ver aí uma oposição entre um movimento que se volta para fora, visando a expansão e a abertura, e outro que se volta para dentro, visando a consolidação ou o fechamento, mas não é isso que está em jogo na estratégia da Teia dos Povos. A consolidação do território é vista pela Teia como um pré-requisito para a expansão ou, melhor ainda, para a associação. A ideia é que, para dar um passo maior, é preciso, primeiro, contar com um solo firme sob os pés, para poder tomar impulso. 

Onde aterrar

Para a Teia dos Povos, a ênfase na consolidação de “centros estratégicos”, assim como a preocupação com o potencial energético e com a proximidade de conglomerados urbanos, se relacionam com a centralidade da autonomia no projeto revolucionário. A preocupação com a autonomia explica, entre outras coisas,a importância conferida ao território.

“Quando estamos falando em território” – escrevem Joelson Ferreira e Erahsto Felício em Por Terra e Território: caminhos para a revolução dos povos no Brasil, livro lançado de forma independente pela editora Teia dos Povos, em 2021 – “não estamos falando de um quadrado de terra (…). Estamos falando de um lugar cheio de símbolos de pertencimento alicerçados na abundância da vida”.

“O princípio é, portanto, a terra, a luta para se manter nela ou retornar para ela”, continuam os autores. “O fim, nosso objetivo final, é o território descolonizado do capitalismo, do racismo e do patriarcado. Ou seja, a superação dessas formas violentas a que fomos submetidos até agora. E o meio para conseguirmos essa vitória está nos próprios territórios, produzindo alimentos, nos dando autonomia, organizando as pessoas e protegendo a vida, pois, se não tomarmos os territórios agora, talvez não exista vida para disputar no futuro”.

O desejo e autonomia explicam, também, a aversão da Teia por uma reforma agrária que tenha como horizonte a aplicação de um modelo de produção rural baseado em monocultura que, muitas vezes, exige transformar floresta em lavoura. Daí a ênfase na agrofloresta e na “cabruca” – que é o nome que recebe no sul da Bahia a técnica de plantar o cacau em clareiras abertas no meio da floresta. 

Explica, também, o desejo de não se limitar ao fornecimento de matéria-prima para a indústria de alimentos (a amêndoa de cacau ou grão do café), mas ter cada vez mais controle sobre a cadeia de produção como um todo, do beneficiamento à distribuição. Não para competir com empresas capitalistas numa lógica de mercado, mas para produzir e consolidar um ecossistema cooperativo de produção e consumo rebelde, que coloque a qualidade de vida de produtores e consumidores em primeiro lugar.

Um dos exemplos, nesse sentido, é o chocolate Terra Vista. O chocolate da Teia dos Povos gera renda, fortalece vínculos comunitários entre produtores e respeita o corpo e o paladar do consumidor. É visível o diferencial em um segmento marcado pela superexploração do trabalho, inclusive infantil, e por reduzir ao mínimo exigido por lei a quantidade de cacau utilizado na produção.

União periférica

Buscando construir soberania, a Teia articula a aliança “Preta, Indígena e Popular”.Para a Teia, cada povo que faz parte dela é senhor de seu território e tem não só o direito, mas o dever de organizá-lo da melhor maneira, respeitando as particularidades ambientais, culturais e religiosas de cada comunidade. É isso que torna possível a colaboração entre indígenas, quilombolas e “desterritorializados”, pessoas que, por diversos motivos, perderam seu vínculo com a terra em algum momento, e, agora, se reencontram em um território.

O que a ideia de território que atravessa o discurso do Mestre Joelson traz em seu bojo é a de uma igualdade de fato, não apenas de direito. Uma igualdade que passa pelo controle popular dos meios de reprodução da vida, começando pela água e pela comida, passando pelo singelo direito de respirar ar puro, descansar à sombra de uma árvore e – por que não? – festejar na companhia dos amigos, tudo isso em segurança. Basicamente, tudo aquilo que falta hoje à absoluta maioria da população pobre que se empilha na periferia das grandes cidades.

Essa igualdade de fato passa longe de qualquer tipo de uniformidade, mas consiste em garantir a possibilidade de alianças que ampliem o alcance dos diversos movimentos sociais envolvidos, mas não impliquem em dependência. Os povos indígenas e quilombolas entenderam bem isso e, não por acaso, mais do que inspiração, são hoje o espírito que move a Teia. Um espírito que rebela contra o ímpeto desenvolvimentista que, no esforço de “incluir” todo mundo no mercado, mais de consumo que de trabalho, se especializou em produzir pobres – gente sem terra, nem território –, meros corpos a serviço de um capitalismo em crise que, em clima de fim de festa, se esforça para extrair mais-valor nos campos mais inusitados, de maneira cada vez mais brutal.  

De certo modo, a crise política que atravessamos hoje no Brasil – nossa incapacidade de criar alternativas concretas para tirar as populações periféricas da miséria e da precarização que não passem pelo mero assistencialismo mas, ao contrário, levam à autonomia – pode ser vista como reflexo dessa crise do capital. 

A expansão do agronegócio e a desindustrialização são, nesse contexto, duas faces de uma mesma moeda. O contrato de gaveta entre capital e trabalho, que durante muito tempo acenou com a promessa de cidadania vinculada à inserção da população ao “mundo produtivo”, parece ter sido rasgado na última década, quando o país abriu mão do horizonte de pleno emprego em nome de um projeto extrativista que coloca na vanguarda do capitalismo contemporâneo uma série de mecanismos de exploração da terra e do trabalho que caracterizavam o sistema em seus primórdios.

Como apontam Joelson Ferreira e Erahsto Felício, em Por Terra e Território: “(…) vivemos uma crise estrutural do capitalismo, e é normal que eles busquem nos países do sul melhores formas de obtenção de riqueza. A própria origem do capitalismo só foi possível porque houve exploração destas terras por potências coloniais do norte. Foi a acumulação fruto da colonização que tornou possível a existência de um sistema capitalista como vemos (…) O problema dessa crise do capital é que ela também busca retirar cada vez mais riqueza da terra, isto no momento em que as luzes sobre as mudanças climáticas estão todas acesas, apesar do esperneio dos negacionistas”.

“Quem muito merenda, não almoça”

Aterrar, nesse sentido, não é apenas encontrar uma terra, mas construir coletivamente um território capaz de oferecer a uma comunidade condições não apenas simbólicas, mas materiais, tanto para estabelecer alianças com outras comunidades igualmente autônomas, como para interagir com outros atores, como o poder público, o mercado e as instituições da sociedade civil, em seus próprios termos.

A luta por autonomia é, portanto, a luta por um projeto político no qual as populações periféricas, os povos indígenas e as comunidades quilombolas apareçam não mais como problema, mas como solução. É dessa perspectiva que os articuladores da Teia dos Povos olham para o poder público de cabeça erguida. Não para pedir recursos, mas para exigir o que lhes é de direito. É com essa altivez baseada em princípios que eles se recusam a aceitar qualquer tipo de “ajuda” que se converta em amarra.

“A gente fica muito com o pé atrás [com muitas ONGs e Institutos] porque muitas vezes as pessoas chegam aqui e querem fazer o que está na cabeça deles”, revela Mestre Joelson. “Nós não concordamos com isso. Nós temos uma comunidade, que teve um processo de construção, um processo longo, de muitos anos, e nós queremos uma relação de parceria, não de paternalismo. Nós queremos uma parceria ganha-ganha e temos alguns critérios, por exemplo: não aceitamos dinheiro de multinacional, não aceitamos dinheiro dessas empresas que vêm, dá um pouco de dinheiro, mas quer tomar conta de tudo. Com isso aí não tem acordo”.

Atualmente, diversos núcleos da Teia, espalhados por 11 estados brasileiros, buscam desenvolver projetos para garantir a soberania alimentar e a geração de renda em seus territórios. O assentamento Terra Vista funciona hoje como uma referência para todas essas experiências.

E para consolidar essa referência é preciso ter clareza de que nem todo dinheiro é bem-vindo. “Não queremos relação com multinacional, com quem está de olho em nossa riqueza, que promove a destruição e depois se aproxima dos movimentos sociais para tentar compensar o que não tem compensação. Nós temos critérios rigorosos quanto a isso mesmo”. 

Para quem vê a emergência climática como oportunidade para ganhar dinheiro e “ficar bem na fita”, a Teia dos Povos explicita sua posição. “Vem muito a gente aqui interessada em utilizar nossa área para fazer sequestro de carbono. Mas no sequestro de carbono, como eu já disse, eles estão vindo aqui para compensar a destruição que foi feita em outros lugares. Pegam uma área de floresta nossa, nos amarram com um contrato de 30 anos e durante esse período todo são eles que dão as linhas, a gente não pode mexer em mais nada, a gente perde a área, enfim, e vira escravo deles, em troca de uma compensação que não gera autonomia, mas dependência.”

Coletivamente, a Teia dos Povos tem se atentado para o perigo da instrumentalização da questão ambiental – seja como estratégia de relações públicas, seja como forma de explorar novos mercados. Mestre Joelson explica: “Nós temos consciência de que o capitalismo está se apropriando desse tema verde. Toda essa discussão de energia renovável, dos alimentos, de tudo isso eles estão se apropriando para comprar lucrar com a grandiosidade de um trabalho que é dos povos. Esse papel aí nós não estamos à disposição para cumprir”.

Em vez de financiadores, a Teia dos Povos procura aliados. Gente disposta a apoiar, por exemplo, o Cabruca, o Fundo Soberano dos Povos, gerido exclusivamente pelas mulheres da Teia e destinado a desenvolver projetos como o do chocolate rebelde ou dos óleos essenciais, produzidos por mulheres da Teia no assentamento Terra Vista. E, sobretudo, como a Teia precisa de gente disposta a “colocar o corpo na luta”, como fala Joelson, para exigir que o estado brasileiro dedique a projetos agroecológicos e à agricultura familiar, no mínimo, linhas de crédito e subsídios equivalentes aos que são destinados hoje ao agronegócio. Nesse sentido, a construção de alianças estratégicas, com outros movimentos e organizações, e o fortalecimento dos elos da Teia nos diversos estados, é fundamental. 


Este artigo e a visita ao Terra Vista para conhecer o trabalho da Teia dos Povos foram feitos a convite do Instituto Alameda. Criado para estimular debates políticos e teóricos da atualidade, o Alameda oferece oportunidades de financiamento, redes de contato global, suporte a publicações e um espaço de aprendizado compartilhado e ação coletiva. Erahsto Felício, co-autor de Por Terra e Território ao lado de Joelson Ferreira, é atualmente um dos pesquisadores afiliados do Alameda.

Artigo publicado originalmente na Revista Jacobin Brasil

Maikel da Silveira

Maikel da Silveira é jornalista e doutorando em filosofia política pela PUC-RJ

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